SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O que a primeira-dama Michelle Bolsonaro quis dizer quando usou o que evangélicos pentecostais chamam de dom de línguas para comemorar a confirmação do amigo André Mendonça no STF (Supremo Tribunal Federal)?
As imagens rodaram a internet: a esposa do presidente Jair Bolsonaro estava ao lado de Mendonça quando ele descobriu que seu nome havia sido aprovado pelos senadores, garantindo-lhe a vaga para o qual foi indicado com a premissa de ser “terrivelmente evangélico”.
A primeira-dama, visivelmente emocionada, levanta os braços, diz “glória a Deus”, dá pulinhos de júbilo, fala “aleluia” e emenda numa língua estranha. Parece chorar de emoção antes de rir, louvar o “Deus de promessas” e abraçar Mendonça.
Michelle, que já frequentou a Assembleia de Deus sob comando do pastor Silas Malafaia e depois se mudou para uma denominação batista na carioca Barra da Tijuca, estava manifestando o Espírito Santo, segundo a crença pentecostal. Não é uma cena incomum em igrejas dessa linha.
O pentecostalismo surgiu nos Estados Unidos no final do século 19 e faz referência à festa de Pentecostes, quando o Espírito Santo teria outorgado aos discípulos de Cristo poderes de cura e glossolalia (falar línguas).
Está no Novo Testamento, em Atos: “E todos foram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem”.
Quem explica melhor o fenômeno é o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), que assumirá a bancada evangélica em 2022.
“Na doutrina pentecostal, quando a pessoa recebe forte carga de emoção e de presença do Espírito Santo, uma das formas que usamos para expressar essa alegria é o que a Bíblia ensina no livro de Coríntios, o dom de falar em outras línguas.”
Essa “outra língua” não precisa ter correlação com o português ou outro idioma conhecido, afirma o pentecostal da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, a igreja de Silas Malafaia.
Ou seja, não existe uma tradução que dê conta dela –para quem vê de fora, parecem frases soltas sem inteligibilidade, como que se o falante estivesse num transe.
“Seriam línguas com as quais a gente se comunica com Deus e com o que cremos. Somente Deus, através do Espírito Santo, entende aquela língua, não é uma língua natural”, diz Sóstenes.
Para adeptos desse galho do evangelismo, há lastro bíblico no que ocorreu com Michelle.
Como nesta passagem do livro de Coríntios: “Aquele que fala línguas fala com Deus, mas não com os outros, visto que os outros não poderão entendê-lo. É verdade que poderá estar a falar pelo poder do Espírito, mas será como algo misterioso”.
“É como se a pessoa estivesse recebendo uma porção da presença de Deus. É uma manifestação individual, pessoal”, diz Pedro Luis Barreto Litwinczuk, o pastor Pedrão, teólogo e líder da Comunidade Batista do Rio.
“No meu ponto de vista, foi o que aconteceu com a primeira-dama. Ela sentiu a presença de Deus de uma forma poderosa e ali falou em línguas, numa questão de alegria interna.”
Não acontece com todo mundo, de acordo com Pedrão, o pastor responsável por celebrar o casamento do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).
“O dom de línguas é um dom espiritual. Você vê que Michelle teve essa manifestação, outros [na sala], não. Não é uma coisa obrigatória para todos os cristãos. É um presente que Deus dá e você não escolhe, você recebe.”
A primeira-dama recebeu também muitas chacotas após viralizarem as imagens no gabinete do senador evangélico Luiz do Carmo (MDB-GO), onde Mendonça aguardava o resultado da votação com aliados políticos, familiares e pastores.
Uma das troças mais corriqueiras diz que sua reação, na verdade, aconteceu ao descobrir o arquivamento da investigação sobre o cheque de R$ 89 mil que Fabrício Queiroz depositou em sua conta.
O estranhamento que o vídeo causou em círculos pouco familiarizados com o pentecostalismo levou a uma onda de zombarias com a fé de Michelle. Portais conservadores enfatizaram o que viram como preconceito religioso contra ela e, por extensão, a todos os evangélicos.
A manchete no religioso Gospel Prime: “Línguas estranhas, glórias e aleluias provocam intolerância religiosa contra Michelle”.
Já o bolsonarista Conexão Política destacou que o comportamento da esposa do presidente “foi o suficiente para que diversos internautas, a maioria ligados ao espectro político da esquerda, proferissem publicações com comentários ofensivos, jocosos e intolerantes”.
A deputada Carla Zambelli (PSL-SP), megafone do bolsonarismo, foi ao Twitter desaprovar quem zombou a cena.
“Os evangélicos são mais de 30% da população brasileira, mas a esquerda não aceita que sejam nem 9% dos ministros do STF. Lembrem-se de cada uma dessas declarações preconceituosas quando um esquerdista vier pedir votos. A primeira-dama Michelle Bolsonaro comemorou foi pouco.”
O prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), não é um aliado natural da direita conservadora. Ganhou ponto com ela, contudo, ao condenar os ataques a Michelle.
“Lamentável quantos posts, a partir dessa notícia, cuspindo preconceito contra a fé dos outros”, escreveu numa rede social. “São os mesmos que vivem reclamando de discriminação. Minha solidariedade à primeira-dama. Que ela possa manifestar sempre sua fé com liberdade. Em tempo: é a minha opinião. Se você tem a outra, ok.”
Para Sóstenes, quem não vive a fé pentecostal “pode até ignorar” o que se passou naquele momento. Haveria, contudo, uma contradição entre aqueles que riem de Michelle e enaltecem rituais de religiões afrobrasileiras, segundo o parlamentar.
“O interessante é que vi algumas críticas ao comportamento dela, imagino até que pelo desconhecimento de alguns. Mas você não vê essas mesmas críticas quando [baixam] aqueles espíritos em pai de santo. Pelo contrário. Acham que é cultura e respeitam quando [os pais de santo incorporados] falam aquelas coisas que ninguém entende.”
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