LUCAS ALONSO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Como se tivesse o poder de viajar por tempo e espaço sem sair de Kiev, o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, tem transitado por diferentes séculos e países para apresentar suas demandas a legisladores de ao menos 11 nacionalidades.
À frente da nação sob ameaça de uma das maiores potências militares do planeta, o ex-comediante alçado à política institucional usa sua habilidade midiática e um pacote robusto de referências históricas para defender sua causa diante de chefes de Estado com algum potencial para mudar os rumos da guerra.
A parlamentares dos Estados Unidos Zelenski evocou o 11 de Setembro, o ataque japonês a Pearl Harbor e tomou a liberdade de adaptar a máxima de Martin Luther King (“Eu tenho um sonho”). No Reino Unido, citou Shakespeare e parafraseou Winston Churchill -a quem muitos já quiseram compará-lo.
Na Alemanha, disse aos membros do Bundestag que eles estão diante de um novo Muro de Berlim, que, diferentemente da estrutura derrubada em 1989, divide a Europa “entre a liberdade e a escravidão” e “fica mais forte a cada bomba que cai” na Ucrânia.
“É um homem de frases feitas”, analisa Pedro Costa Júnior, cientista político e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP). “Às vezes, parece que ele sente como se estivesse em um filme de super-herói e lança frases que poderiam ter saído da boca de Mel Gibson ou Tom Cruise.”
As escolhas são estratégicas e revelam a tentativa de estabelecer ligações de empatia entre o que ocorre hoje na Ucrânia e as memórias históricas das nações que param para ouvir Zelenski.
“Há um desejo de coletivizar a guerra e torná-la uma responsabilidade que vá além de seu país e de seu povo”, afirma Luiz Alberto de Farias, professor da USP e especialista em opinião pública.
Ao discursar no Parlamento do Canadá, por exemplo, o presidente ucraniano chamou o premiê Justin Trudeau pelo primeiro nome e, na falta de referências históricas mais fortes, apelou ao presente.
“Imagine que às 4h da manhã cada um de vocês ouve explosões. Explosões terríveis. Justin, imagine que você ouve e que seus filhos ouvem. Eles o abraçam e perguntam: ‘o que aconteceu, pai?'”, disse, buscando criar na mente dos interlocutores a imagem de cidades como Ottawa, Toronto e Vancouver sendo bombardeadas por um inimigo imaginário.
Na Itália, Zelenski também pediu que os parlamentares imaginassem Roma e Gênova sob ataque militar. Na França, comparou o cenário de Mariupol -cidade ucraniana sitiada pela Rússia e hoje praticamente toda destruída- às “ruínas de Verdum”.
“Como nas fotos da Primeira Guerra Mundial, que, tenho certeza, cada um de vocês viu”, disse Zelenski aos presentes na Assembleia Nacional em Paris, pouco antes de evocar também o lema da Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade).
Se funcionam para as manchetes na imprensa e para atrair atenção à crise humanitária bastante real em várias cidades ucranianas, as performances de Zelenski não necessariamente surtem o mesmo efeito em quem de fato tem poder de decisão, segundo os especialistas.
“Essa abordagem tem impactado a opinião pública especialmente porque parte da grande mídia aderiu à ideia de que Zelenski seria uma espécie de salvador”, diz Farias. Na prática, porém, “o raciocínio dos chefes de governo europeus é pragmático, objetivo. Não é um ‘mise-en-scène’ que fará diferença para o alcance de um possível ingresso da Ucrânia na União Europeia, por exemplo.”
Para Costa Júnior, o Ocidente faz uma espécie de jogo com Zelenski. “Eles dão respaldo abrindo as portas dos Congressos, aplaudindo, levantando bandeirinhas da Ucrânia”, diz o pesquisador. “Mas não mandam um soldado americano –ou alemão, inglês ou francês– lutar ao lado dos ucranianos.”
Essa crítica, aliás, o próprio Zelenski faz aos aliados. A cada novo discurso, as demandas são reiteradas: a criação de uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia, o envio de armas e equipamentos militares que tornem mais robusta a defesa de Kiev e a imposição de sanções mais duras e constantes contra a Rússia, entre outras reivindicações.
Ocorre que os movimentos das potências ocidentais são calculados para evitar que a Rússia os enxergue como uma interferência militar direta no conflito, o que multiplicaria o risco de a situação expandir fronteiras e se tornar uma Terceira Guerra Mundial.
Em tempos de batalhas de desinformação e conteúdo bélico viralizando no TikTok, o ucraniano, de toda forma, segue apostando nas redes sociais e no front midiático -já que no termo mais literal, militar, suas chances de vitória são mais questionáveis. “A guerra midiática Putin já perdeu, assim que que a invasão começou. A Rússia realmente foi cancelada”, afirma Costa Júnior.
Mesmo quando não recorre à memória própria do país anfitrião, Zelenski lança mão do combo retórica-história para defender seus argumentos. No Japão, desviou-se de referências que poderiam ser consideradas óbvias, como as bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, e recontou a tragédia doméstica de Tchernóbil -com a qual, por óbvio, os japoneses se identificam, dado o episódio da usina de Fukushima, atingida por um tsunami em 2011.
Até agora, o presidente da Ucrânia não discursou em nenhum país da América Latina, embora no Brasil Eliziane Gama (Cidadania-MA) tenha apresentado ao Senado um requerimento para convidar Zelenski a falar ao Congresso.
Costa Júnior reconhece a penetração que os discursos de Zelenski tiveram na opinião pública, mas avalia que o efeito pode não ser perene. “Heróis construídos artificialmente pelo Ocidente não costumam dar muito certo. Zelenski foi deixado à própria sorte. Ou ao próprio azar.”
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