SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “São milhões de dólares em jogo na disputa entre duas equipes, Renault e Haas. É a velha Europa contra o Novo Mundo. A realeza francesa contra a potência americana.”
O nono episódio da primeira temporada da série “Drive To Survive”, lançada pela Netflix em 2019, dedicou-se a mostrar os bastidores de uma disputa que envolvia equipes do meio do grid do Mundial de 2018 da F1. A narração, porém, buscava criar um significado maior do que a rivalidade em si. Daí o tom de grandeza.
As duas equipes não tinham chances de vencer corridas naquele ano, mas essa história era fundamental para os planos da gigante do entretenimento -e da própria categoria.
Desde 2017, quando a empresa norte-americana Liberty Media comprou a F1 do britânico Bernie Ecclestone, os novos donos traçaram como metas modernizar o campeonato, atrair um público mais jovem, aumentar a presença nas redes sociais e expandir alguns mercados, sobretudo nos Estados Unidos.
No domingo (7), quando Miami se tornar o 11º local em solo norte-americano a sediar uma etapa da F1, os planos traçados há cinco anos poderão ser dados como bastante avançados.
A quinta etapa, com largada marcada para as 16h30 (de Brasília), teve esgotados os ingressos colocados à venda. A prova será realizada no circuito recém-construído em torno do Hard Rock Stadium, a casa do Miami Dolphins, da NFL (liga de futebol americano). A promessa da organização é justamente criar um clima de Super Bowl.
Durante quatro dias, a partir desta quinta (5), uma série de eventos vai atrair milhares de fãs ao circuito, além de astros de outros esportes e celebridades, como LeBron James, Tom Brady, Michael Jordan, David Beckham e as irmãs Williams. Na TV, a ESPN, dona dos direitos de transmissão nos Estados Unidos, espera índices elevados de audiência.
Em mais de 70 anos de história, a competição criada na Europa vive o momento de maior ascensão entre os norte-americanos. Eles representam o mercado mais atingido pelo sucesso da produção da Netflix e serão os únicos com três corridas em 2023, com a adição do GP de Las Vegas, juntando-se a Miami e Austin.
“O impulso da F1 foi demonstrado nas últimas temporadas, e vimos esse potencial se tornar realidade à medida que vemos nossa base de fãs realmente crescer em todo o mundo, mas especialmente aqui nos Estados Unidos”, analisa Greg Maffei, presidente e CEO da Liberty Media.
Um exemplo disso foi visto em 2021, quando o GP de Austin, no Texas, registrou um aumento de 56% no público em relação a 2019 -em 2020 não houve corrida no local por causa da pandemia de Covid-19. Ao longo dos três dias de atividades na pista no ano passado, o evento teve 400 mil ingressos vendidos, até então a maior marca da história da F1-superada pelo GP da Austrália deste ano, com cerca de 420 mil bilhetes utilizados.
Piloto de testes da equipe Haas, a única americana no grid, o brasileiro Pietro Fittipaldi também sente uma mudança no interesse do público. “Quando não estou viajando para as corridas, eu moro na Carolina do Norte, onde fica a base da Haas. E, hoje, vejo uma grande diferença aqui, porque antes não se falava muito da F1. Agora, o pessoal da minha idade, da idade dos meus irmãos, de 20 anos, fala muito. E não são só os homens, as mulheres também. A maioria assistiu ao seriado e passou a acompanhar as corridas”, diz.
O heptacampeão Lewis Hamilton, da Mercedes, também acredita que a F1 “quebrou a bolha” nos EUA. “Eu sentia que existia uma grande desconexão entre os EUA e o restante do mundo em termos de paixão pela F1, e é incrível ver que quebramos isso.”
A audiência de TV da categoria nos Estados Unidos reflete esse interesse. Segundo a F1, houve um aumento de 58% no número de espectadores em relação a 2020, o que fez a ESPN registrar importantes marcas ao iniciar uma nova era do automobilismo em sua grade.
No fim da última década, os canais da Disney caminhavam para abandonar as transmissões de corridas em solo americano. Primeiro, não renovaram o contrato com a Nascar, em 2014. Depois, deixaram de exibir a a NHRA e a IndyCar em 2015 e 2018, respectivamente.
Em 2018, porém, quando a NBC desistiu de exibir a F1, a ESPN recebeu uma oferta de assumir o Mundial. De acordo com relatório da empresa Morgan Stanley, o canal recebeu os direitos gratuitamente. Em 2019, as partes firmaram uma extensão de três anos, sem revelar os termos financeiros, que certamente foram volumosos devido à crescente audiência.
A abertura da atual temporada, no Bahrein, teve uma média de 1,35 milhão de espectadores durante a vitória de Charles Leclerc, da Ferrari. Foi a maior audiência da ESPN desde a recente aquisição da categoria.
A corrida também foi a segunda mais vista na história da TV a cabo dos Estados Unidos, superada apenas pelo GP do Brasil de 1995, com média de 1,74 milhão de espectadores -a primeira corrida realizada em Interlagos depois da morte de Ayrton Senna, em 1994.
Estabeleceu-se um recorde em 2021, quando a ESPN teve uma média de 949 mil espectadores por etapa. A temporada que teve como campeão o holandês Max Verstappen, da Red Bull, foi a mais vista de todos os tempos na televisão norte-americana.
“[Os Estados Unidos] são o grande mercado onde vimos uma incrível mudança de apetite pela F1. Sobretudo uma mudança na idade média das pessoas envolvidas, graças às novas formas de comunicações com os jovens, graças à Netflix e às redes sociais”, afirma o CEO da categoria, o italiano Stefano Domenicali.
Uma pesquisa apresentada pela categoria em parceria com a Motorsport Network, em 2021, encomendada à Nielsen Sports, indicou que o público da F1 tem, em média, 32 anos, inclusive nos Estados Unidos.
Em comparação com outros esportes americanos, o Mundial tem uma base de fãs muito mais jovem. De acordo com dados da consultoria Magna Global, entre 2006 e 2016, o público da Nascar subiu de 49 para 58. A mesma empresa aponta, ainda, que a idade média do fã da NFL é de 50 anos, e a da NBA (a liga de basquete norte-americana), de 42.
“Isso é um efeito da linguagem certa, da narrativa certa e das ferramentas certas, que estão mais próximas de como a geração mais jovem está se comportando”, disse Domenicalli.
Um relatório divulgado pela F1 no final do ano passado apontou que a categoria teve um aumento de 40% em sua base de seguidores nas redes em que mantém perfis ativos (Facebook, Twitter, Instagram, Twitch, YouTube, Tiktok, Snapchat e plataformas sociais chinesas), chegando a 49 milhões no total.
O documento afirma que as visualizações de vídeos aumentaram 50%, chegando a 7 bilhões, além de o engajamento total ter subido 74%, alcançando 1,5 bilhão de interações. Era fundamental ganhar espaço nesse terreno, sempre negligenciado por Bernie Ecclestone.
“Eu prefiro atingir um rico de 70 anos. […] Se os marqueteiros estão mirando esse público [jovem], talvez eles devessem anunciar na Disney”, chegou a afirmar enquanto comandava a categoria.
A visão da Liberty era diferente. E isso ficou claro quando foi firmada a parceria com a Netflix. A série tem sido responsável por atrair cada vez mais jovens para a F1. A quarta temporada, lançada em março, foi a mais vista na plataforma no fim de semana de seu lançamento em 33 países.
Embora criticada por alguns pilotos, como Verstappen, que vê alguns excessos na construção da narrativa ao falar das rivalidades, é quase um consenso no paddock o impacto positivo da produção.
“A F1 é um esporte fascinante, com política e personalidades. Acho que ‘Drive to Survive’ acertou em cheio, expôs isso ao mundo e parece ter realmente ressoado nos Estados Unidos”, resumiu Zak Brown , chefe da McLaren.
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