SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Sacha foi ao cinema Moscou, em Vladivostok, assistir ao lançamento “Panda Vermelho”. Deixou o seu Moskvitch zero-quilômetro num estacionamento e, ao entrar na sala de exibição, envergava uma garrafa de CoolCola. Após a sessão, passou num Mak para levar um hambúrguer para casa.
A cena acima não ocorreu, mas seus elementos estão colocados para definir a nova realidade russa sob o império das sanções ocidentais contra a Guerra da Ucrânia, iniciada há quase três meses por Vladimir Putin.
Como numa versão perversa do pequeno clássico “Adeus Lênin” (Wolfgang Becker, 2003), no qual uma socialista renitente acorda de um coma no mundo pós-muro de Berlim e seu filho cria um simulacro de Alemanha Oriental no microcosmo doméstico, os russos seguem em 2022 –mas cercados cada vez mais por uma realidade alternativa.
O cine Moscou, na capital do Extremo Oriente russo, realmente exibiu durante alguns dias de maio estréias de Hollywood. “Panda Vermelho” era na realidade o infantil “Red: Crescer é uma Fera”, “O Morcego”, o novo Batman com Robert Pattinson, e “O Ouriço Azul 2” traz a segunda aventura do personagem Sonic.
Em sua versão oficial, todos esses filmes tiveram seu lançamento proibido na Rússia após as sanções, por temor das distribuidoras de ser pega em alguma punição colateral. As cópias piratas chegaram, e sessões secretas nas grandes cidades evoluíram para o paroxismo em Vladivostok.
A festa acabou com a novidade se espalhando nas redes sociais, e o cinema alegou que as exibições eram privadas, contratadas por particulares. Ficou por isso. Mas é apenas o começo da história.
Na segunda-feira (16), Sacha e outros moscovitas foram apresentados à nova linha de refrigerantes da antiga fábrica soviética Otchakovo, até aqui especializada em bebidas típicas russas como o kvass (de centeio fermentado).
Nas prateleiras de lojas de conveniência, um incauto poderia comprar a CoolCola, a Fancy e a Street achando que eram as originais ocidentais Coca-Cola, Fanta e Sprite –todas as marcas oficialmente suspenderam sua produção no país devido à guerra. As garrafas emulam o esquema de cores das matrizes e o gosto, segundo quem a provou, tem menos dulçor.
No bolso, são mais atrativas do que as ainda existentes latinhas e garrafas dos estoques do produto de origem estrangeira. Um litro e meio de Street sai por 89 rublos (R$ 6,8), valor equivalente ao de uma lata com 500 ml de Coca ou de Pepsi, marca ainda mais abrangente e que também suspendeu suas vendas –mas não de toda sua linha alimentícia.
“Parece que colocamos um óculos de realidade virtual e tudo está lá, mas diferente”, diz Sacha, um jornalista que pede para não ter o nome divulgado por temer o clima generalizado de repressão no país. O país prevê reduzir em 25% a importação de bens de consumo em 2022, e perdeu estimadas 750 marcas ocidentais após o conflito.
A segunda-feira trouxe outros dois itens ao cardápio da cena imaginada no começo deste texto. Moskvitch (moscovita, em russo) era o nome de uma das marcas mais famosas de carro da União Soviética, feito de 1946 até o desmoronamento do império comunista, em 1991. Por mais dez anos, sobreviveu em versões renovadas na Rússia, até falir e ter o espólio absorvido pela Renault.
A montadora francesa tinha sua maior operação no exterior no país de Putin, empregando 45 mil pessoas. Na segunda, anunciou ter vendido tudo ao governo por preço simbólico e garantia de recompra em seis anos –um sinal sobre o horizonte da crise na visão dos empresários.
O governo de Moscou ficou com o controle das fábricas e revendas, e o prefeito Serguei Sobianin prometeu ressuscitar a marca Moskvitch com auxílio da Kamaz, maior fabricante russa de caminhões, que tem como maior acionista a estatal de tecnologia Rostec. Se haverá peças e chips para os novos carros, esta é uma questão em aberto.
Já o McDonald’s, rede cuja chegada à União Soviética em 1990 está na linha temporal do ocaso do comunismo, havia fechado suas 847 lojas russas de forma temporária assim que a guerra estourou. Com o custo mensal de US$ 50 milhões para manter a rede, também jogou a toalha nesta segunda e colocou tudo à venda.
Ainda não há notícia de comprador, mas parece certo que alguma adaptação será feita –talvez não o Mak aqui sugerido, dado que o acordo prevê o veto ao uso de símbolos e nomes associados à marca, restando saber se isso sobreviverá à astúcia russa em lidar com as sanções até aqui.
Apesar das pressões e de ver até a seleção de futebol suspensa da Copa do Qatar, a economia russa não implodiu ainda e o rublo segue estável, devido às manobras de valorização como a obrigatoriedade de negócios com a moeda para os países considerados hostis.
Mesmo nesse grupo, como a reticência europeia de cortar a compra de R$ 5,4 bilhões diários de óleo e gás russos prova, há divisões. E os amigos de Putin China e Índia têm aumentado seu intercâmbio comercial, além de abocanhar ativos na xepa dos preços russos.
Na vida cotidiana, há inflação, ainda não os trágicos 25% anuais esperados pelo FMI (Fundo Monetário Internacional), que prevê um PIB negativo em talvez 15% em 2022. O impacto no desemprego também está contratado, com uma expectativa dos atuais 5% dobrarem até o fim do ano.
Para a classe média, os efeitos mais imediatos têm sido a limitação de uso de cartões de crédito, o virtual desligamento do sistema de viagens internacionais e o cancelamento cultural da Rússia. E, cada vez mais, o mundo paralelo do sumiço das marcas ocidentais e a ascensão da CoolCola.
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