HAVOLENE VALINHOS
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na tentativa de definir quem são os povos ciganos, encontra-se a diversidade. São diversas as línguas, os costumes, as religiões e as profissões relacionadas a eles. No Brasil, não há um censo que os contabilize, e muitos não assumem sua ascendência publicamente. Motivo: receio de serem discriminados.
No último dia 2, o Senado aprovou projeto de lei 248/2015, que cria o Estatuto dos Povos Ciganos. O texto, que segue para análise na Câmara dos Deputados, prevê entre outras questões a inclusão dos povos ciganos nas políticas públicas de desenvolvimento econômico e social e em programas de ações afirmativas.
A autoria é do senador Paulo Paim (PT-RS) em parceria com a Anec (Associação Nacional de Etnias Ciganas).
“Desde 2006 comemoramos em 24 de maio o Dia Nacional do Cigano. Porém é uma grande alegria contar com uma legislação específica para nós”, afirma Wanderley da Rocha, presidente da Anec. “Esse documento vem para nos tirar da invisibilidade. Há leis que amparam outros povos, mas também temos direitos e, por isso, estamos em busca para assegurá-los”, diz.
Rocha afirma que, até o momento, o povo cigano se baseava na portaria 940, do Ministério da Saúde, de 2011, para acessar com maior facilidade os serviços de saúde, e na Resolução 3 do Ministério da Educação, de 2012, que garante o direito à matrícula em escola pública a quem vive em situação de itinerância.
O estatuto prevê sensibilização e qualificação dos profissionais de saúde quanto às necessidades e peculiaridades dos povos ciganos, além de assegurar o atendimento de urgência e emergência nos serviços do SUS (Sistema Único de Saúde) ao cigano que não for civilmente identificado.
Daiane da Rocha Biam, secretária-geral da Anec, cita a importância das políticas públicas que promovam o acesso à terra e à moradia, previstas no estatuto. “Muitas pessoas dizem que se o cigano é itinerante, por qual motivo quer lutar por terra? O fato é que temos o direito de escolher ir ou fixar residência em um local como os outros povos.”
Segundo o Guia de Políticas Públicas para Povos Ciganos, publicado em 2013 pela Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), há pelo menos três etnias ciganas no país: Calon, Rom e Sinti, com suas línguas, culturas e costumes próprios.
“Os Rom brasileiros pertencem principalmente aos subgrupos Kalderash, Machwaia e Rudari, originários da Romênia; aos Horahané, oriundos da Turquia e da Grécia; e aos Lovara”, explica o documento.
“Os Calons, com grande expressão no Brasil e em todo o território nacional, oriundos da Espanha e Portugal. Os Sinti chegaram em nosso país principalmente após a 1ª e 2ª Guerra Mundial, vindos da Alemanha e da França”, detalha o guia.
O povo cigano reivindica a realização de um censo para saber quantos são no Brasil. De acordo com dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2011 foram identificados 291 acampamentos ciganos, localizados em 21 estados, com maior concentração na Bahia (53), Minas Gerais (58) e Goiás (38).
“Esse levantamento foi realizado com a ajuda das prefeituras e não dá para saber quantos ciganos viviam em cada acampamento. São dados muito frágeis, não sabemos quantos ciganos há no país mesmo eles estando aqui desde o século 16”, afirma Rodrigo Corrêa Teixeira, professor da PUC Minas e autor do livro “Ciganos no Brasil: Uma Breve História”.
“No país, apesar de não termos um censo oficial, sabemos que há aumento de ciganos evangélicos, antes a maioria era católica. Além disso, o nomadismo predomina, motivado pelo fato de grande parte deles serem comerciantes”, comenta o pesquisador.
A Folha solicitou a atualização dos dados, bem como informações de quais ações e políticas públicas para essa população estão em andamento. Até a conclusão desta reportagem, a Seppir não havia se manifestado.
A cartomante e produtora cultural Luciana Dara é de família cigana e organizadora da festa Ciganos Cidadãos do Mundo, que aconteceu no último dia 21 em São Paulo para comemorar o Dia Nacional do Cigano e o Dia de Santa Sara Kali, a padroeira desses povos.
“Mesmo quando está triste, o cigano faz festa. É uma de nossas características”, diz.
Ela afirma que no Brasil existe preconceito, mas também fascinação pelo povo cigano. “Muita gente confunde a questão religiosa por causa de leitura de mãos, magias, simpatias, mas isso faz parte da tradição. Não temos uma religião específica, cada um escolhe a crença com que mais se identifica.”
Luciana Dara explica que, mesmo entre as famílias ciganas tradicionais, que mantêm os casamentos entre pessoas do grupo para preservar a cultura, algumas coisas vêm mudando. Atualmente, diz, a grande parte dos ciganos mora em casas e estuda, mas conserva tradições.
“As mulheres nasciam para casar e jogar [cartas]. Hoje, estudam mais, até porque a maioria tem acesso à internet e, mesmo a contragosto da família, querem estudar. Antigamente, a noiva cigana não conhecia o noivo, hoje eles se aproximam por meio dos aplicativos e mantêm um relacionamento virtual até o casamento.”
Contudo, diz, mesmo com mudanças, ainda é usual que os ciganos se casem jovens. “A cobrança [da comunidade] é tanto para o homem quanto para a mulher. Se tem 18 anos e não casou, o povo comenta. E o noivado de cigano é rápido: noivou hoje, semana que vem já estão casados”, comenta.
NA EUROPA
De acordo com dados da Comissão Europeia, a estimativa é de que de 10 milhões a 12 milhões de ciganos vivam no continente, sendo aproximadamente seis milhões cidadãos ou residentes da União Europeia. Mas muitos são vítimas de preconceito e exclusão social.
Em Portugal, a ex-eurodeputada Ana Gomes, que concorreu às eleições presidenciais em 2021 e ficou em segundo lugar, com 12,8% dos votos, foi batizada, durante a campanha, como a candidata cigana pelo adversário deputado André Ventura, que terminou a disputa presidencial com 11,9% dos votos.
Gomes afirmou à Folha que Ventura dizia que a maioria dos ciganos recebia o benefício do RSI (Rendimento Social de Inserção), mas estudos do Instituto de Segurança Social apontaram que apenas entre 3% e 6% dos beneficiários eram do grupo étnico cigano.
A ex-candidata, que também é diplomata aposentada, diz não ter origem cigana, mas defende a minoria por respeito pelos direitos humanos e por acreditar na plena integração.
“Quando Ventura me chamou de candidata cigana por eu defender a comunidade contra os ataques racistas dele, disse que então eu era [cigana], com muita honra”, afirma ela, apontando outros problemas sociais enfrentados pelo povo cigano, como a luta por moradia. “Hoje, a maior parte tem morada fixa, mas vive em bairros segregados ou em casas precárias, algumas feitas de latas. Existem programas para ciganos no país, mas não muito eficazes.”
Segundo Gomes, alguns setores da sociedade portuguesa ainda discriminam o povo cigano por relacionar esse termo a alguém que trapaceia ou é desonesto. “Há até uma crença popular que diz que ciganos têm medo de sapo. Logo, há locais que colocam sapos nas portas para afugentá-los. Isso ocorre mais nas comunidades rurais e entre pessoas com menos instrução. O mesmo ocorre em outros países da Europa”, diz.
Ela também chama a atenção para o fato de jovens de famílias ciganas, por vezes, não terem coragem de assumir sua origem por causa do preconceito. “A maioria trabalha como comerciantes ou feirantes. Porém muitos já têm curso superior. Uma jovem me contou que fez uma entrevista de emprego e quando souberam que era cigana sentiu certa mudança no tratamento. Por isso muitos se escondem.”
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