Na próxima quarta-feira (16), Joe Biden e Vladimir Putin escreverão o trigésimo capítulo da rica história dos encontros de cúpulas entre ocupantes da Casa Branca e do Kremlin desde que seus países viraram rivais ao fim da Segunda Guerra Mundial.
Essa reuniões, tanto nos tempos da União Soviética como nos da Rússia pós-1991, sempre trouxeram expectativas de anúncios importantes ou, ao menos, a melhoria no clima entre dois países que somam mais de 90% do arsenal nuclear do mundo.
Houve cúpulas históricas, como a que selou o fim da Guerra Fria em Malta (1989) ou a que iniciou o controle de armas nucleares (Moscou, 1972), e desastrosas: em 1960, o soviético Nikita Khrushchov simplesmente deixou o encontro, na esteira da derrubada de um avião espião americano U2 no seu país.
Na quarta, em Genebra (Suíça), contudo, nada disso é esperado. A quantidade de contenciosos entre os rivais é tão grande que coube ao veterano chanceler russo, Serguei Lavrov, definir a previsão em uma palestra na semana passada: “Não esperem avanços”.
“Se houvesse a ideia de repetir uma cúpula como a de 1985 em Genebra, então os acordos teriam sido discutidos antes entre os chefes da diplomacia dos dois países. Eles não fizeram isso”, afirma a economista Ekaterina Zolotova, da consultoria americana Geopolitical Futures.
Naturalmente, o fato de a reunião estar ocorrendo é um avanço em si, o otimista dirá. É fato, mas ambos os líderes indicam que vão usar a oportunidade para reafirmar suas desavenças fundamentais, cada um com um objetivo específico em mente.
A começar com Biden, autor do convite do encontro e novidade em campo -em termos, dada sua longa carreira e os oito anos como vice de Barack Obama (2009-17), mas nada perto das duas décadas de poder do russo.
O americano começou seu mandato em janeiro com um aceno a Putin, aceitando estender o último acordo em vigor para limitação de armas nucleares estratégicas, aquelas que trariam o apocalipse se usadas.
Mas no mesmo anúncio indicou uma constante de sua gestão: pediu estudos sobre o caso do envenenamento e posterior prisão do líder opositor russo Alexei Navalni e sobre os ataques de hackers ao governo americano em 2020.
Biden telegrafa o que quer fazer, e até aqui seus estudos são profecias autorrealizáveis.
Dito e feito, chamou Putin de assassino e impôs sanções pelo caso Navalni, além de prometer punições pela suposta ação do Kremlin contra infraestrutura digital americana e as eleições de 2016 e 2020.
Numa escalada perigosa ocorrida em abril, viu Putin montar uma ameaça militar contra a Ucrânia, para desfazer o risco de Kiev tentar invadir as áreas rebeldes pró-Rússia no leste de seu próprio país.
A confusão deu chance ao russo de dar seus termos, que basicamente devolvem os territórios para a Ucrânia, mas os mantêm autônomos de forma a inviabilizar a integração do vizinho ao arcabouço institucional europeu -Otan, a aliança militar liderada pelos EUA, à frente.
Na crise, Biden se colocou ao lado do fragilizado Volodimir Zelenski, o comediante que preside a Ucrânia. O quão longe ele iria caso o conflito congelado desde 2014 -quando Putin o estimulou após anexar a Crimeia para evitar que um novo governo em Kiev aderisse ao Ocidente- esquentasse é incógnita.
O pedido pela cúpula ocorreu exatamente durante a crise.
Seja como for, a Ucrânia resume a reunião. Nenhum dos lados deve ceder. As sanções ocidentais não serão aliviadas, qualquer acomodação de demandas seria uma enorme surpresa.
O mesmo pode ser dito sobre o apoio do Kremlin ao ditador belarusso, Aleksandr Lukachenko, que interceptou um avião comercial irlandês só para prender um dissidente. Ou sobre os interesses divergentes na geopolítica da vacinação contra a Covid-19.
As críticas mútuas são esperadas acerca do papel da Otan, ainda mais quando Biden terá acabado de fazer sua primeira cúpula com o clube, na segunda (14).
O americano está tentando remendar o estrago deixado por Trump, que desprezava os aliados, e o temor deles com o recente movimento de Putin é fator a ser considerado.
Dois temas podem gerar tensão adicional. Um é a questão dos direitos humanos, encarnada no tratamento a Navalni. Para deixar claro seu ponto de vista, a Rússia baniu o Fundo Anticorrupção do opositor preso na semana passada.
Outro é a questão dos ciberataques, que o presidente russo rejeita ser obra de sua tropa.
“Não faz nenhum sentido pensar em algum avanço. Tudo o que não for lateral é um beco sem saída, pior do que em certos períodos da história soviética”, diz Alexei Kolesnikov, do Centro Carnegie de Moscou.
Por e-mail, ele afirma que o problema está do lado russo. “Enquanto era possível falar com [o líder soviético Leonid] Brejnev, é inútil falar com Putin”, afirma.
Para Biden, toda essa animosidade serve ao propósito de montar uma imagem durona, ao mesmo tempo em que não se recusa a conversar. Na mira, o público interno que ainda ouve de aliados do antecessor Donald Trump que o democrata é frouxo, e os rivais estratégicos em Pequim.
Zolotova tem dúvidas sobre a exposição aos chineses. “Acho que é um diálogo que só serve a fins domésticos para ambos”, afirmou.
Tal jogo convém a Putin de outro modo. O russo está em plena campanha de repressão do que sobrou de oposição nas franjas de sua classe média: Navalni, outros opositores, jornalistas, todos agora são tachados legalmente de “agentes estrangeiros” e passíveis de assédio do Estado.
“Em nome da histeria da luta contra os ditos agentes estrangeiros, as autoridades estão simplesmente eliminando toda a sociedade civil em nome de uma ‘ocidentefobia'”, afirma Kolesnikov.
Ele faz o paralelo disso com a campanha de expurgo antissemita do ditador Josef Stálin de 1948 à sua morte, em 1953, na qual ele culpava os “cosmopolitas sem raízes” pelos males soviéticos.
E nada mais útil a isso do que a agressividade renovada de Biden. O americano sabe a posição econômica dominante que exerce e trata Putin como inferior, mas isso é visto como deboche nas elites russas, o que embute também riscos.
Com a economia cambaleante, embora blindada contra o efeito de sanções, Putin às vezes sinaliza ter noção de sua fragilidade neste campo. Há duas semanas, ele foi instado a comentar a fala do novo chefe da inteligência britânica, Richard Moore, que chamou a Rússia de “potência declinante”.
“Então por que se preocupar? Se for esse caso, fique calmo e não deteriore as relações russo-britânicas”, disse Putin, mencionando que mesmo na pandemia o comércio entre os países subiu 54%.
Sarcasmo à parte, há uma admissão da vulnerabilidade econômica russa, país muito centrado na exportação de hidrocarbonetos. Aí entra um ponto no qual pode haver algum avanço em Genebra.
Na sexta (11) começaram os testes de uso da primeira das duas linhas do gasoduto Nord Stream 2, que liga a Rússia à Alemanha, aumentando a dependência europeia do produto de Putin, aliviando a passagem dele pelas complicadas Ucrânia e Belarus.
Os EUA se opõem ao projeto, mas ele é um fato consumado. Analistas de energia dizem que Biden poderia sinalizar um relaxamento das sanções aos europeus sócios da gigante russa Gazprom.
No mais, haverá conversas sobre a questão das armas nucleares, provavelmente positivas, talvez algum acerto sobre como terminar a guerra civil na Síria e pontos laterais, como a volta dos embaixadores dos dois países a seus postos e a normalização dos serviços consulares.
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