Desde outubro do ano passado, a ajudante de cabeleireiro Rosilda da Silva Magalhães, de 55 anos, está com os exames prontos para fazer uma cirurgia para a troca de duas válvulas cardíacas e aguarda o chamado do hospital. Enquanto espera, tem episódios frequentes de tontura e mal-estar. Ela está entre os cerca de 60 mil pacientes com doenças cardiovasculares diretamente afetados pela pandemia de covid-19 que tiveram procedimentos suspensos ou adiados porque leitos estavam ocupados com infectados pela doença.
A situação é agravada por uma crise no fornecimento de materiais essenciais para essas cirurgias. Com a alta do dólar e defasagem na Tabela SUS, fornecedores têm dificuldade de repassar os produtos sem prejuízo e hospitais da rede pública nem sempre conseguem repor a diferença para garantir as compras, o que já resulta em desabastecimento de itens em 52% das unidades que fazem o serviço, segundo levantamento da Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular (SBCCV).
“A pandemia simplesmente represou as cirurgias cardiovasculares. Normalmente, a gente faz de 95 mil a 100 mil por ano e, no ano passado, fizemos menos de 40 mil. Então, tem mais ou menos 60 mil cirurgias eletivas que estão represadas. Elas não são de urgência, mas o problema é que estão ficando para trás”, diz Eduardo Rocha, presidente da SBCCV. “Além disso, teve o impacto tributário, o dólar disparou e muitos produtos são importados”, completa.
A entidade tem alertado sociedades médicas e instituições ligadas à indústria desde o fim do ano passado e passou a se deparar com o apagão de materiais em janeiro deste ano. “Começaram a faltar alguns produtos, como válvulas cardíacas, oxigenadores e cânulas para poder operar dentro do coração. São usados em cirurgias de ponte de safena, correção de defeitos congênitos de adultos e crianças, trocas de válvulas. E para cirurgia cardíaca de peito aberto.”
Kit intubação. A retomada dos procedimentos eletivos não amorteceu o problema, pois esbarrou em outra questão que preocupou o País neste ano: a escassez de sedativos, analgésicos e bloqueadores, medicamentos do chamado kit intubação, que também são usados em cirurgias cardiovasculares. “Tivemos um primeiro trimestre com UTIs ocupadas, sem o kit intubação e isso é muito grave. Mesmo quem conseguir assistência pode ter o quadro agravado e muita gente vai morrer antes de ter assistência adequada. Estamos muito preocupados.”
Rosilda precisa trocar as válvulas mitral e aórtica e chegou a ter uma previsão de cirurgia para dezembro.
Enquanto a data não é marcada, sofre com os impactos do problema de saúde. “Não consigo andar na rua de máscara, tenho tontura e preciso parar e sentar. Até hoje, ninguém me ligou. Era para fazer no Hospital Evangélico, aqui em Belo Horizonte. Tem a falta de alguma coisa para o procedimento, mas não falam diretamente.”
Em nota, o hospital confirmou a situação. “Praticamente, toda a linha de materiais da cirurgia cardíaca não está sendo atendida pelos fornecedores. Desde janeiro de 2021, os fornecedores informaram sobre a dificuldade de atender os hospitais com os valores da tabela do SUS, sendo necessário uma complementação de valores, que hoje é inviável para os hospitais filantrópicos custearem.”
A fila tem, atualmente, 34 pessoas. Para resolver a situação, o hospital relatou o quadro para a Secretaria Municipal da Saúde e para o Ministério Público, solicitando “até mesmo encaminhamento desses pacientes para outros hospitais que tenham materiais disponíveis”.
A espera do aposentado Victor Camilo de Souza, de 72 anos, por três pontes de safena começou no mês passado. “O coração dele está fraco. O cardiologista recomendou ficar em repouso, não pode ter nenhum estresse nem estado nervoso. Só que causa uma ansiedade no paciente e na família. Não tem previsão da data e ele fica nervoso com a espera”, conta a filha do paciente, a autônoma Rosimeire Camilo de Sousa, de 43 anos. A reportagem tentou contato por e-mail e telefone com o Hospital Evangélico Goiano, em Anápolis (GO), mas não conseguiu retorno.
Presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), Celso Amodeo explica que a fila já era um desafio antes da pandemia, mas que a covid-19 piorou a situação. “A pandemia veio mostrar uma série de deficiências do sistema público de saúde.” Com o represamento de cirurgias, o quadro de saúde pode se agravar, demandando tratamentos mais complexos e, em casos extremos, levando o paciente à morte. “Pode ter situações em que o momento cirúrgico é bom e se perde isso.”
Crise
A queda de procedimentos somada à questão dos reajustes da Tabela SUS impactou o setor que atua com esses materiais, segundo Fernando Silveira Filho, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Alta Tecnologia de Produtos para Saúde (Abimed). “No que diz respeito aos impactos da pandemia da covid e da redução de cirurgias eletivas, 89,66% das associadas reportaram queda na receita, 10,34% aumento do endividamento, 13,79% viram reduzir o número de clientes e 79,31% observaram aumento no valor da aquisição de produtos e insumos.”
Superintendente da Associação Brasileira da Indústria de Dispositivos Médicos (Abimo), Paulo Henrique Fraccaro diz que o principal componente para esses procedimentos é o oxigenador, que está, desde 2002 sem reajuste. “A inflação neste período, pelo IPCA, foi de 181%. Pedimos para o governo federal que, pelo menos, tenha um reajuste de 107,8%.”
O Ministério da Saúde informou, em nota, que tanto a compra de insumos quanto a realização de procedimentos cardiovasculares são responsabilidades dos gestores locais e que faz os repasses que “correspondem aos procedimentos realizados e informados pelas Secretarias de Saúde, de acordo com a Tabela SUS.” De acordo com o ministério, desde 2010, mais de mil procedimentos tiveram seus valores reajustados.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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