RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – O refrão do samba-enredo ecoa baixo no silêncio do barracão enquanto quatro ou cinco homens colam as últimas tiras de dourado na traseira do carro alegórico enorme e avermelhado. O burburinho habitual já não existe mais.
“Isso aqui a essa hora seria pluma e paetê para todo lado”, diz o aderecista Júnior Fernandes, 30. Ele conhece bem o ritmo da Beija-Flor, escola onde trabalha desde a adolescência. “Antes a gente tinha que se virar nos 30”, relembra.
Falta pouco menos de um mês para o Carnaval, mas neste ano a festa chegou atrasada. Por isso, a esta altura, os galpões onde as agremiações produzem seus desfiles já se esvaziaram de funcionários, que agora cuidam apenas dos últimos detalhes de “perfumaria”.
Em tempos normais, o prazo é apertado e as apresentações só costumam ficar prontas na semana em que as escolas colocam o pé na avenida. O objetivo desta vez, porém, é encobrir as alegorias e fechar os galpões da Cidade do Samba, na zona portuária do Rio de Janeiro, de 7 a 15 dias antes.
Tem agremiação que até já terminou: “Como nos preparamos para fevereiro, já deixamos tudo praticamente pronto e lacramos o barracão”, diz Tarcísio Zanon, carnavalesco da Viradouro, última campeã do Sambódromo da Marquês de Sapucaí, em 2020.
Ao lado de Marcus Ferreira, ele assume o enredo “Não Há Tristeza Que Possa Suportar Tanta Alegria”, que promete contar a história do Carnaval de 1919, o primeiro depois da gripe espanhola e considerado o maior de todos os tempos, num paralelo com a pandemia do coronavírus.
O único elemento que resta é a comissão de frente, que precisa ensaiar de forma constante, o que desgasta a pintura e a cola dos elementos alegóricos. “E estamos fazendo uma revisão nas fantasias, porque não estávamos preparados para esse último adiamento”, afirma Zanon.
Há pouco mais de dois meses, quando as escolas já estavam a todo vapor, os prefeitos Eduardo Paes (PSD) e Ricardo Nunes (MDB) anunciaram em conjunto uma nova remarcação dos desfiles carioca e paulistano para 22 e 23 de abril, por conta da explosão de casos da variante ômicron.
No Salgueiro, a soma de mais de dois anos de preparação permitiu que o carnavalesco Alex de Souza redesenhasse todas as fantasias, uma a uma. “Eu tive uma visão do enredo e depois pensei: não, acho que posso ir por outro caminho. Foi a primeira vez na vida que pude fazer isso”, conta.
Ele inicialmente imaginou o enredo “Resistência” -que vai retratar territórios importantes para a cultura negra na cidade do Rio de Janeiro- de forma mais “crua e teatral”, mas depois resolveu trazer “o lado mais espetáculo da coisa”.
O prazo mais extenso também fez bem ao figurinista Fábio Santos, 42, da Beija-Flor. “Para a minha área, que é a criação, a calmaria é muito mais funcional do que o tumulto em si. Posso pensar mais”, diz ele, estranhando o vazio do ateliê no andar de cima do barracão, que agora só tem 12 dos 80 artesãos habituais.
Se, por um lado, o tempo extra trouxe mais tranquilidade, por outro trouxe ansiedade e desânimo. “As pessoas já estavam exaustas psicologicamente, tivemos que dar uma injeção de ânimo para continuarem acreditando”, diz o carnavalesco da Unidos de Vila Isabel, Edson Pereira, lembrando que muita gente temeu um novo cancelamento da festa.
A demora trouxe ainda o cuidado redobrado com a manutenção dos materiais. Calor, maresia, poeira e até fezes de pombo ameaçam meses de trabalho nos galpões. As tintas metálicas, por exemplo, oxidam facilmente à beira do porto do Rio, aponta Zanon, da Viradouro.
“Tivemos que reforçar a cola para que não derreta e descole”, detalha também o aderecista Júnior, em frente a um imenso carro branco da Beija-Flor protegido por uma lona preta -uma das alegorias que vai retratar a contribuição intelectual negra para construção do Brasil.
Os dois anos de pandemia exigiram das escolas driblar outro desafio: um mercado escasso e portanto extremamente caro das matérias-primas de Carnaval, em grande parte importadas da China e de outros países.
“A saída foi trabalhar com tecidos que são produzidos aqui, como cetim e oxford [mistura de algodão e elastano ou poliéster], e estampas próprias. A gente esperava essa baixa do mercado e se programou”, explica o diretor de criação da escola de Nilópolis, André Rocha.
“Onde entra a dificuldade entra a criatividade”, concorda Pereira, da Vila Isabel. Segundo ele, mais do que triplicou o preço de materiais como ferro, madeira e isopor, que vem do petróleo, sem contar a alta no valor do transporte e da mão de obra.
Muitos dos que viviam de Carnaval precisaram se reinventar e buscar outras fontes de renda durante a crise, e acabaram não voltando em meio à incerteza dos desfiles, o que reduziu as equipes. Júnior, que coordenava a decoração de uma alegoria, teve que assumir três.
Além do baque econômico, a Vila Isabel sentiu o golpe da pandemia diretamente no seu enredo. Vai desfilar na avenida a história de Martinho da Vila, ícone da escola, um tema aguardado por muitos membros veteranos da comunidade que se foram com a doença.
“Foi muito difícil mesmo equilibrar esse sentimento, eles vão ser homenageados em vários momentos”, conta Pereira. “O verso ‘canta forte, canta alto, que a vida vai melhorar’ é justamente para dar esperança à nossa gente. Hoje o clima é de muita vontade, garra, desejo de que esse Carnaval aconteça”, diz.
Deixe o Seu Comentário