SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A conjuntura política da época foi um dos fatores que possibilitaram a instalação da CNV (Comissão Nacional da Verdade), que completa dez anos, nesta segunda (16).
Os acúmulos obtidos em diversas iniciativas institucionais ao longo dos anos anteriores e a pressão internacional foram outros pontos importantes que ajudaram a construir o clima propício para iniciar o trabalho de análise de um período sensível da história política do Brasil.
O grupo analisou violações aos direitos humanos ocorridas no regime militar que comandou o país entre os anos de 1964 e 1985.
A situação mapeada na época ficou ofuscada no cenário político atual, com uma crise que envolve diferentes Poderes e as Forças Armadas às vésperas do período eleitoral e insinuações golpistas por parte do presidente Jair Bolsonaro (PL), defensor do período da ditadura.
“A comissão é tardia em relação ao nosso processo de redemocratização, quando a gente compara com outros contextos, mas ela não nasce no vazio”, afirma Fernando Perlatto, professor do departamento de história da Universidade Federal de Juiz de Fora.
“”Nós já vínhamos tendo ações desde o governo Fernando Henrique Cardoso, depois no governo Lula. Iniciativas importantes relacionadas ao que a gente chama de justiça de transição.”
Ao longo do regime militar, que entrou em vigor após uma conturbada situação política no país e foi implantado através de um golpe, foram muitos os relatos de violência contra opositores, presos e desaparecidos políticos, e tortura.
Os números não são precisos por causa da forte repressão que existia na época e do pouco acesso às informações. A ditadura também nunca reconheceu esses episódios.
Auditorias da Justiça Militar mostram 6.016 denúncias de tortura, estimativas feitas depois apontam para 20 mil casos. Os relatos de sobreviventes incluem presos pendurados em paus de arara, choques e estrangulamento.
A comissão que analisou estes casos foi instituída em 16 de maio de 2012 e os trabalhos duraram até dezembro de 2014. As análises foram conduzidas por sete conselheiros designados pela então presidente do país Dilma Rousseff.
O grupo promoveu audiências públicas, recebeu documentos e fotos e colheu depoimentos de vítimas e acusados. Os trabalhos inspiraram a criação de várias outras comissões que atuavam em âmbito estadual e municipal.
Oficialmente, a CNV teve por finalidade apurar violações de direitos humanos de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988, embora o grupo tenha focado especialmente nos casos ocorridos após o golpe de 64.
Em seu relatório final, a comissão apresentou detalhes sobre prisões, tortura e assassinatos e identificou 434 mortes e desaparecimentos de vítimas do regime militar.
A análise afirma que na ditadura militar, a repressão e a eliminação de opositores políticos se converteram em política de Estado, com decisões emanadas da Presidência da República e dos ministérios, com participação de militares em atos de violência.
Perlatto inclui a pressão de diversos setores da sociedade civil ligados aos direitos humanos como outro fator que ajudou a construir o caminho para a instalação da comissão.
“Não podemos esquecer que o projeto para a instalação da comissão foi aprovado no Congresso Nacional. Pensemos hoje o que seria um projeto como esse submetido ao Congresso. Havia uma conjuntura política favorável.”
A Comissão da Verdade também analisou a violência praticada contra grupos específicos. Entre os recortes estavam violações aos direitos humanos relacionadas a camponeses; aos povos indígenas; a comunidade LGBTQIA+.
“A Comissão Nacional da Verdade, para além do impacto do relatório e das informações que ela traz, abriu um cenário de possibilidades para que o debate público sobre a ditadura ganhasse uma repercussão que não tinha desde o processo de redemocratização”, afirma Perlatto.
Ele cita como exemplos matérias na imprensa, filmes e livros que teriam sido impulsionados por “esse clima que o trabalho da comissão criou”.
Se por um lado o período logo após a apresentação do relatório da CNV registrou o surgimento ou aprofundamento de pesquisas e materiais culturais com o objetivo de denunciar as violências, foi também o momento em que ganharam força movimentos pró-militares.
Desde 2014, tem sido cada vez mais comum em passeatas, redes sociais e manifestações públicas de políticos a defesa aberta da ditadura, a relativização das torturas ocorridas no período e pedidos para a instalação de um novo regime militar no Brasil.
Segundo o historiador Fernando Perlatto, boa parte desse movimento “teve muito a ver com uma reação a criação da Comissão da Verdade”.
Caroline Silveira Bauer, professora do departamento de história da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), concorda.
Segundo ela, o momento de divulgação do relatório foi o “pior possível”. A conclusão dos trabalhos aconteceu logo depois das eleições de 2014.
“Eleições essas que foram questionadas e o país entrou em uma crise política e econômica muito grande, o que fez com que todo investimento posterior com a comissão se frustrasse. A gente pode dizer que desde que o relatório foi entregue nós só tivemos retrocessos nas políticas de memória relativas a ditadura militar”, analisa.
Isso porque, segundo a pesquisadora, nenhuma das medidas recomendadas pelo relatório final foram assumidas como política de Estado.
Apesar disso, Caroline Bauer afirma que a própria existência da comissão, mesmo com limitações de tempo, número de pessoas e dinheiro, teve um legado positivo “no sentido de explicitar para a sociedade brasileira que não dá para virar a página desse passado da ditadura sem analisar esse período”.
Sobre as recomendações do relatório final da comissão, ela diz que foram importantes para fomentar uma discussão social sobre o legado da ditadura.
“Nenhuma Comissão da Verdade, por si só, se basta. Inclusive, porque uma comissão não tem prerrogativa jurídica. O que é preciso é uma política de Estado na qual a Comissão da Verdade seja uma das etapas e que se garantam outros direitos”, diz.
“Não apenas a memória e a verdade, mas também o direito à Justiça, e essa é a etapa que não foi efetivada, nem uma Justiça reparatória nem uma Justiça penal.”
A reportagem procurou o Ministério da Defesa, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica, mas não obteve resposta.
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