(FOLHAPRESS) – Metade da população é a favor das cotas raciais nas universidades públicas, mostra pesquisa Datafolha. O apoio é maior, de 60%, entre as pessoas com filhos em escolas particulares –que, teoricamente, seriam preteridos com a ação afirmativa.
Quanto mais jovem, escolarizada e de maior renda a pessoa, maior é o apoio a essa ação afirmativa. Também há aprovação levemente superior entre a população preta (53%) e parda (52%) do que entre brancos (50%).
A pesquisa Datafolha foi feita em parceria com o Cesop-Unicamp sob a coordenação da Ação Educativa e do Cenpec. O levantamento, realizado em março, aborda várias agendas educacionais.
“Esse apoio é significativo porque as cotas raciais mostraram o potencial de democratização do ensino superior brasileiro”, diz Denise Carreira, da Ação Educativa.
Posicionam-se contrários às cotas raciais 34%. Outros 3% se mostraram indiferentes e 12% disseram não saber responder.
A pesquisa ouviu 2.090 pessoas a partir de 16 anos em 130 municípios. A margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou para menos.
A primeira universidade de grande porte a reservar vagas foi a Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), em 2003. No mesmo ano, a UnB (Universidade de Brasília) seria a pioneira a ter cotas raciais. Foi com a Lei de Cotas, de 2012, que todas as federais passaram a adotar a política.
As cotas passaram a ser implementadas de forma escalonada até chegar, em 2016, à reserva de 50% das vagas para a escola pública. A legislação exige separação de cadeiras para pretos, pardos e indígenas de acordo com a proporção da população de cada estado, além de preconizar corte de renda.
A lei prevê revisão do programa de acesso para este ano, dez anos após seu início. O recorte racial das cotas sempre esteve no centro dos debates mais intensos: fruto de intensa mobilização do movimento negro, enfrentou resistências de vários setores da sociedade e de dentro do mundo acadêmico. Essa pesquisa Datafolha não traz perguntas sobre as cotas sociais.
Evidências têm se acumulado sobre o efeito positivo da inclusão com as cotas ao transformar o retrato racial e social das universidades para algo mais próximo da realidade da sociedade –que financia a universidade pública.
Estudos e análises também indicam que não houve, como alardeavam os críticos, prejuízos de qualidade no desempenho do alunado, o que também quebrou barreiras. A USP (Universidade São Paulo), com histórico de rejeição às cotas, decidiu em 2018 adotar a reserva também com critérios raciais.
A instituição tomou a decisão depois de insistir por anos em uma política de bonificação que, com algum efeito na inclusão de egressos de escolas públicas, não foi efetiva para negros. Pesquisa mostrou que a diferença de notas entre cotistas e não cotistas é pequena e cai durante o curso.
Um estudo recente do pesquisador Adriano Sekenvics, do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), mostrou que a a participação de pretos, pardos e indígenas nas instituições federais de ensino superior vindos da escola pública passou de 27,7%, em 2012, para 38,4% em 2016.
Dados de 2019 mostram uma proporção de 39% desse público nas universidades, segundo pesquisa da Ação Educativa e Lepes (Laboratório de Estudos e Pesquisas em Educação Superior) da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Pretos, pardos e indígenas somavam naquele ano 56% da população com idade entre 18 e 24 anos.
“Nossa avaliação a partir das pesquisas é que as cotas são um programa muito bem sucedido, e que de fato contribuiu para mudar a cara das universidades, dos nossos campi, e principalmente nas instituições e cursos mais seletivos. Isso é a grande diferença”, diz Rosana Heringer, coordenadora do Lepes-UFRJ.
“Em 2016, começa a se sentir fortemente o processo de democratização, com inclusão de negros e indígenas”, diz a professora Dyane Brito, da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia). “É um crescimento nunca antes visto no Brasil”, completa.
Segundo especialistas, dados do Datafolha corroboram outras investigações qualitativas que apontam uma maior aderência à política quanto maior é o nível de informação e de contato com a universidade ou com seus efeitos sobre a inclusão.
João Feres, coordenador do Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa) da Uerj, explica que ainda há um grande desconhecimento sobre como as cotas funcionam. Isso explicaria, inclusive, por que a aceitação entre as pessoas de maior renda, escolaridade e com com filhos em escola privada.
“Como a universidade foi por muito anos lugar de privilégios, há um movimento de autoexclusão, os meninos negros e brancos de escola pública ainda não se veem ali”.
O Datafolha aponta maior falta de opinião sobre as cotas entre aqueles com filhos em escolas públicas: 11% desse grupo respondem não saber sobre a questão, enquanto o percentual é de 3% no outro grupo.
Quando foi aprovada, a lei previu que a revisão fosse feita pelo governo. Uma mudança em 2016, quando foi incluída reserva para pessoas com deficiência, retirou essa atribuição e agora o Congresso tem se debruçado sobre o tema.
O presidente Jair Bolsonaro (PL) já disse ser contrário à política, mas não houve movimentações consistentes no governo para alterá-la. Questionado, o MEC (Ministério da Educação) não respondeu.
Há movimentações para adiar qualquer alteração, baseada na avaliação de que a conjuntura política e ideológica do governo Bolsonaro não favoreceria uma revisão qualificada.
A pesquisa Datafolha também reforça o caráter ideológico que permeia a avaliação sobre a política. A aprovação é maior entre as pessoas que consideram o governo Bolsonaro péssimo (57%) do que entre aqueles que avaliam a gestão como ótima (31%).
Foram apresentadas nesta legislatura na Câmara 19 proposições sobre a Lei de Cotas, segundo o Observatório do Legislativo Brasileiro. Dessas, nove são favoráveis, uma neutra, e nove contrárias, segundo o órgão. Tal disputa está centrada na manutenção do recorte racial.
Segundo Feres, também coordenador do Observatório, o cenário no Legislativo ainda é incerto, mas a crítica às cotas perdeu força nos últimos anos. “Não acho que exista ainda hoje uma campanha contrária sistemática, como houve antigamente e que por muito tempo foi bancada pela mídia”.
Em 2006, mais de uma centena de intelectuais e artistas divulgaram manifesto contrário à proposta. Reportagem da Folha mostrou que mais de uma dezena de signatários mudaram de opinião recentemente.
A política ainda enfrenta entraves, segundo especialistas, com a redução de orçamento para permanência estudantil e um empenho tímido das próprias universidades para garantir o sucesso acadêmico desses estudantes.
Especialistas dizem que traços de um racismo estrutural ainda permeiam a questão ao normalizar a ausência de negros, assim como indígenas e pessoas com deficiência em ambientes como as universidades. Por isso, há a defesa de que esses temas sejam debatidos na educação básica.
A pesquisa Datafolha também fez perguntas sobre a abordagem de discriminação racial nas escolas e respeito a crenças religiosas.
A maioria (81,4%) concorda totalmente que a discriminação racial deve ser discutida na escola. O respeito na escola pública a todas as práticas religiosas –inclusive o candomblé, a umbanda e até mesmo o ateísmo– é apoiado por 93,7%.
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