BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Entidades que representam mulheres transexuais e travestis afirmam que ainda há barreiras para denunciar a violência doméstica ou familiar, mas consideram um avanço a decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) de ampliar o alcance da Lei Maria da Penha a casos envolvendo esse grupo.
Outras instâncias do Judiciário e delegacias nos estados já aplicavam a Lei Maria da Penha, no entanto, o entendimento não era unificado sobre o tema.
Em um levantamento realizado pela Folha de S.Paulo, as 16 unidades da Federação que responderam aos questionamentos da reportagem disseram que já faziam uso da legislação para mulheres transexuais e travestis.
Na prática, entretanto, as organizações alegam que o sistema de justiça ainda convive com a discriminação. Dandara Rudsan, coordenadora do Nepaz (Núcleo Estratégico de Direitos Humanos e Promoção da Paz), disse que a violência existe muitas vezes na própria delegacia.
Segundo ela, delegados se recusam a registrar ocorrências aplicando a Lei Maria da Penha porque no documento a mulher ainda possui o nome de registro masculino ou chega até mesmo ser questionada sobre o gênero em decorrência do timbre de voz.
Na avaliação da coordenadora, há estados mais estruturados que outros, sendo a situação mais complicada no Norte do país.
“As maiores barreiras para denunciar a violência estão na própria delegacia porque é um local de extrema violência. Elas são questionadas em relação ao gênero, são questionadas se são causadoras da própria violência”, disse.
A travesti Felipha Gaga da Silva Santos, 24, mora em Altamira, no Pará. Na cidade viveu por seis anos um relacionamento que acabou com agressões psicológica e física. Na tentativa de buscar ajuda, procurou a delegacia da cidade para registrar um boletim de ocorrência e tentar uma medida protetiva.
O pedido da jovem era de que se registrassem os crimes cometidos nos termos da Lei Maria da Penha. Na ocasião, o delegado disse que o corpo de Felipha era do sexo masculino e que o caso poderia ser registrado somente como lesão corporal.
“Eu fui agredida por aquela pessoa [ex-namorado] e ficou por isso mesmo porque não quis registrar dessa forma. Eu que me afastei dele e segui minha vida. Acho que precisa de mais um trabalho humanitário, uma capacitação, eles [autoridades] não estão nem aí para nós”, avaliou.
Com esses problemas recorrentes, as entidades afirmam que o sistema de justiça, em vez de ser porta de entrada para acolher essas mulheres que são vítimas de violência doméstica, acaba levando-as a desistir de procurar ajuda.
Bruna Benevides, secretária-política da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e militar da Marinha, disse que a maior parte das travestis e mulheres trans não vão às delegacias fazer denúncia.
“A maioria não procura as delegacias porque não se sente segura e acolhida, é um ambiente violento e excludente. [Para] Aquelas que procuram, na maioria das vezes, a proteção não é garantida nos termos da lei. Como é uma política que não garante proteção às mulheres trans, o Brasil não possui dados de quantas sofrem violência doméstica”, disse Bruna.
Ela afirma ainda que a própria decisão do STJ denuncia como o Estado tem atuado para omissão dos direitos trans e se torna uma grande conquista.
A decisão da Sexta Turma foi tomada após serem negadas em outras instâncias as medidas protetivas a uma mulher trans que sofreu agressões do seu pai na residência da família. No entendimento dessas instâncias, a proteção da Maria da Penha seria limitada à condição de mulher biológica, pois a lei prevê proteção ao gênero feminino.
O caso analisado diz respeito, concretamente, a uma mulher trans. Entretanto, ao longo do voto, o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, teceu uma série de considerações sobre as diversas categorias de reconhecimento identitário -entre elas, as pessoas travestis. Em um trecho do voto, afirma que “as identidades são diversas e aqui não se pretende esgotar o elenco das respectivas categorias”.
Para o ministro, a lei apenas exige, para sua aplicação, que a vítima seja do gênero feminino. “O verdadeiro objetivo da Lei Maria da Penha seria punir, prevenir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher em virtude do gênero, e não por razão do sexo”, declarou o magistrado, em seu voto.
“É um direcionamento do colegiado e chama as instituições nacionais a refletir. Antes de negar, vão pensar duas vezes e a gente tem mais respaldo. O Brasil tem legislação fraca para defender transexuais e travestis, o que nós temos são resoluções, portarias, jurisprudências”, disse Dandara.
Mariell Antonini Dias, delegada titular da Delegacia Especializada de Defesa da Mulher, Criança e Idoso de Várzea Grande (MT), disse que na delegacia da mulher da cidade já se aplicava a Lei Maria da Penha a mulheres trans.
No entanto, não há normatização sobre esse ponto no estado, por isso nem todas as delegacias possuem esse entendimento. “Com essa decisão do STJ a matéria fica mais clara já que a aplicação da Lei Maria da Penha na maioria dos casos é feita pelas delegacias especializadas”, disse.
A delegada Jamila Jorge Ferrari, coordenadora das Delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo, disse que, para não haver dúvida sobre o tema no estado, foi publicado um decreto em 2020 estabelecendo que a vítima de violência doméstica a ser atendida pela delegacia da mulher é toda aquela do gênero feminino.
“A mulher, independentemente de ser trans, cis, já tem dificuldade de pedir ajuda por medo, vergonha, isso, de alguma forma, traz mais tranquilidade para que elas possam procurar a delegacia. Se um delegado se recusar a registrar um boletim, ele pode ser advertido na corregedoria da Polícia Civil”, disse.
Inês Virgínia Prado Soares, desembargadora do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, disse que tem tido uma resposta mais efetiva em relação ao direito de transexuais e travestis o Judiciário.
A desembargadora cita, por exemplo, que o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que mulheres trans e travestis que se identifiquem com o gênero feminino podem escolher cumprir pena em presídio feminino ou masculino.
A corte também já permitiu alterar o nome no registro civil sem a necessidade de realização de cirurgia de mudança de sexo.
“Não é falta de norma, mas é educação para os direitos humanos, tolerância, diversidade. No caso do Brasil elas podem morrer quando o juiz manda uma trans para um presídio masculino, se recusa a aplicar a Lei Maria da Penha porque viu no documento um nome masculino”, disse.
Inês acrescentou que, assim como no caso da Lei Maria da Penha, muitas vezes o crime contra mulheres transexuais e travestis não são enquadrados como feminicídio.
“Mulheres trans ainda morrem muito no Brasil pelo fato de serem mulheres e por serem trans. Eu acho que há um claro feminicídio, mas muitas vezes ele é mascarado, por exemplo, pelo nome no documento, o que não deveria ter importância”, disse Inês.
Bruna acrescentou que, até hoje, são raríssimos os casos reconhecidos como feminicídio contra mulheres trans no Brasil. Só há notícias de dois deles dentre os 781 assassinatos de pessoas trans nos últimos cinco anos, de acordo com dados da Antra.
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos foi questionado se teria uma política voltada para mulheres trans relacionada à violência contra a mulher e se elas também fazem parte do Plano Nacional de Enfrentamento ao feminicídio.
O plano foi lançado para fortalecer as ações de enfrentamento a todas as formas de feminicídio. Segundo a pasta, todas as mulheres brasileiras são atendidas.
“Duas unidades da pasta que estão relacionadas diretamente com o tema, as secretarias nacionais de Proteção Global e de Políticas para as Mulheres vão contribuir com estudos para apontar a melhor forma de atender plenamente a decisão do Superior Tribunal de Justiça”, disse.
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