BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Quase oito em cada dez brasileiros demonstram rejeição ao ensino domiciliar, indica pesquisa Datafolha. O tema é uma das bandeiras ideológicas do governo Jair Bolsonaro (PL) na educação e há expectativa de que sua regulamentação seja votada na Câmara nesta semana.
Um total de 78,5% discorda totalmente de os pais terem o direito de tirar os filhos da escola para ensiná-los em casa -62,5% totalmente, e 16% em parte.
Os dados são de pesquisa Datafolha realizada com o Cesop-Unicamp sob a coordenação da Ação Educativa e do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária).
O ensino domiciliar é pauta histórica de grupos conservadores e religiosos. Bolsonaro tem almejado, ao conseguir sua aprovação, agradar sua base de apoio guiada por princípios cristãos e ideológicos.
O tema foi colocado pelo governo no ano passado como a única prioridade da educação no Congresso.
Defensores, que vão na contramão da grande maioria dos especialistas, argumentam que regularizar o tema atende ao direito das famílias de decidir como educar os filhos e que milhares de adeptos vivem sob insegurança jurídica.
Críticos defendem que oficializar a opção fere o direito de frequentar a escola, considerada por eles crucial para a educação integral e para a socialização.
Essa última visão tem forte adesão na população, mostra o Datafolha. Para 89,9%, as crianças devem ter o direito de frequentar as escolas mesmo que seus pais não queiram.
A pesquisa ouviu 2.090 pessoas a partir de 16 anos em 130 municípios. A margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou para menos.
A educadora Denise Carreira, da Ação Educativa, diz que os dados mostram descompasso do governo e de grupos conservadores com os anseios da população, que sempre valorizou a escola. O que, segundo ela, ficou mais forte com a pandemia.
“Crianças educadas de forma segregada ficam mais vulneráveis para enfrentar os desafios da vida”, afirma. “É a escolarização que possibilita socialização, e esse espaço é muito importante para a formação integral das crianças.”
Frequentar a escola é considerado algo importante para as crianças segundo a opinião de 99,4% das pessoas.
Alexandre Magno, assessor jurídico da Aned (Associação Nacional de Ensino Domiciliar), defende não haver respaldo para o argumento de que “não conviver com outros tipos de famílias” cria sujeitos intolerantes.
“No fundo, o que estão dizendo é que, se uma família média brasileira educa seus filhos de acordo com seus valores, não educa um cidadão pronto, mas um radical. Esse raciocínio não faz sentido”, diz.
Ao ter acesso aos dados da pesquisa, Magno afirma ter dúvida sobre a real compreensão das pessoas sobre o ensino domiciliar. “Esse fenômeno existe e temos a preocupação de que ele seja oficializado, inclusive para que haja fiscalização”, diz.
Seis em cada dez pessoas se dizem (bem, ou mais ou menos) informados sobre o tema. Por outro lado, 25,5% dizem não ter ouvido falar.
O professor aposentado da USP (Universidade de São Paulo) Romualdo Portela ressalta que o sujeito de direito da educação é a criança, que deve ser protegida.
“Quem defende o ensino domiciliar são grupos que de alguma maneira querem se apartar da sociedade, do diferente, e não correr risco de ter questionada sua forma de vida e de pensar”, diz ele, diretor de pesquisa e avaliação do Cenpec.
“Os pais não têm o direito de dizer que o filho não vai estudar e se educar. E, na tradição ocidental, educar-se é estar na escola, única instituição organizada para aprender a viver em sociedade”, completa Portela.
Também chamado de “homeschooling”, o tema está na agenda do governo federal desde o início do mandato. Bolsonaro e seus seguidores têm aversão, por exemplo, a abordagens sobre diversidade e educação sexual.
A educação domiciliar não é considerada uma modalidade educacional no Brasil. A Constituição obriga as famílias a matricularem seus filhos entre 4 e 17 anos.
Em 2018, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que o modelo não é inconstitucional. Assim, sua oferta dependeria de regulamentação legislativa.
Relatado pela deputada Luisa Canziani (PSD-PR), o projeto de lei de regulamentação está na pauta do plenário da Câmara de terça-feira (17). A deputada foi procurada, mas não respondeu à reportagem.
O MEC também se manteve em silêncio.
O texto prevê alguns mecanismos de controle. Entre as exigências, estão a necessidade de um dos responsáveis, ou preceptor, ter ensino superior, de a matrícula estar vinculada a uma escola, além de avaliações periódicas.
Também é prevista a perda do direito à educação domiciliar caso haja reprovações. Esse ponto, assim como a exigência de diploma, teve oposição da Aned, embora Alexandre Magno ressalte que os pontos não inviabilizam o apoio ao projeto.
Não há informações precisas sobre o número de famílias na educação domiciliar. O próprio governo chegou a divulgar que a quantidade estava entre 5.000 e 31 mil.
O trabalho coordenado pela Ação Educativa e pela Cenpec -que contou com financiamento do Fundo Malala- incluiu uma pesquisa qualitativa com grupos de pessoas. A percepção tirada dessa etapa é de um entendimento do ensino domiciliar próximo ao ensino remoto da pandemia.
A rejeição estaria associada à importância dada à socialização na escola e à conclusão de que pais não são aptos a ensinar como os professores.
Por outro lado, a preocupação com a forma que a escola aborda valores da família é decisivo para os que defendem o modelo, segundo resumo da pesquisa.
A psicanalista Maria Cristina Kupfer argumenta que a escola não é apenas o local para adquirir conhecimento, mas é ligada à própria noção de infância.
“Faz parte da construção da subjetividade estar com outras crianças diferentes, em relação mediada por um adulto, por um professor, lembrando que aquele é um grupo formativo”, diz ela, professora titular sênior da USP.
“Mas em casa não teria isso? Não, porque um elemento essencial nessa troca para a construção da subjetividade é o grupo ser heterogêneo, e na escola encontram-se outras famílias que pensam diferentes, que têm outra tradição, outras origens.” Além disso, afirma, “é a heterogeneidade que produz tolerância”.
Kupfer ressalta a importância da sociabilidade na relação com os pais. “É importante que as crianças vejam que os pais não são tudo.” A casa, diz, não é um microcosmo social, mas “um pequeno núcleo”.
Denise Carreira enfatiza que essa não é uma pauta inofensiva. “Não é só o direito que é atacado, mas a própria noção de democracia, que, para ser construída, precisa de encontros, respeito e convivência.”
O ensino domiciliar é emblemático sobre o teor ideológico da pauta de educação no governo Bolsonaro, a despeito das prioridades da educação brasileira. O MEC esteve ausente no apoio às redes de ensino na pandemia e ficou distante do debate sobre a renovação do Fundeb, mecanismo de financiamento da educação básica.
Iniciativas de educação do governo foram classificadas como retrocessos em diagnóstico elaborado pelo movimento Agenda 227, que envolve 18 organizações. Além de elencar a educação domiciliar entre os pontos negativos, o grupo cita a política de educação especial lançada em decreto em 2020.
O documento vai no sentido da segregação de crianças em salas especiais, em contraste ao princípio da inclusão. O Datafolha também perguntou sobre esse tema: 81% dizem que crianças com deficiência devem frequentar a mesma sala de aula que as outras crianças.
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