Polêmico, sincero, ídolo de alguns e rejeitado por outros. Daniel Alves tem várias facetas. Fala muito sobre sonhos, diz não mudar sua filosofia de acordo com o pensamento alheio e costuma usar metáforas curiosas para explicar suas ideias e decisões. A decisão que mais ressoa até hoje foi a sua saída em setembro do ano passado do São Paulo, time para o qual diz torcer. O veterano lateral, de 38 anos, afirma que divergências entre ele o clube do Morumbi foram determinantes para o distrato. Segundo o atleta, os interesses dele e dos dirigentes eram opostos. Os atrasos salariais, garante o atualmente jogador do Barcelona, não foram determinantes para o rompimento. “Nunca quis ser maior do que o São Paulo”, enfatiza em entrevista ao Estadão.
“Eu estava há dois anos com esse problema de grana e nunca dei uma declaração falando sobre isso. Nunca quis ser maior do que o São Paulo. Se o problema tivesse sido esse, já tinha cortado a raiz”, afirma Daniel Alves. “Mas eu estava querendo construir uma coisa e eles não estavam querendo. Se as pessoas pensam de maneiras diferentes, elas não vão para o mesmo lugar”. Embora a passagem pelo Morumbi tenha sido conflituosa, não há mágoas da parte do lateral. “Essa desavença toda foi gerada por pessoas, não pelo sonho. O sonho é intocável”.
“A abelha não tem tempo de ensinar para a mosca que mel é melhor que merda”. O lateral explicou o contexto desse insólito ditado, talvez a frase mais marcante que aparece em “Dani Crazy Dream”, série documental de seis episódios lançada pela plataforma Fifa+ que mostra a trajetória do jogador até a Copa do Mundo do Catar, caso ele chegue até lá. A analogia envolvendo a abelha e a mosca causou polêmica e foi mantida pelos diretores no documentário porque, segundo eles, “representa a história do Daniel Alves” e o que ele pensa.
“As pessoas estão achando que o São Paulo é a merda e o Barcelona é o mel? Não, muito pelo contrário. A mosca nunca vai ser uma instituição. Ela é simplesmente a mosca, uma parte pequena da vida. Se as pessoas quiserem ir para o outro lado, elas vão. O sentido da frase é que não tenho tempo a perder tentando explicar para as pessoas o caminho a seguir”, explica o atleta. Ele avalia ter deixado o clube no momento certo e reconhece que, se fosse ele o dirigente, não teria o contratado porque “o time precisava ser estruturado, não endividado”. “Quando nos reunimos para discutir sobre isso, eu perguntei: ‘vocês têm certeza de que querem me trazer para o São Paulo? Porque a conta não vai fechar em algum momento e nós podemos nos prejudicar'”.
Por ora, foram lançados dois capítulos do mini documentário. Outros quatro serão liberados nos próximos meses. A produção executiva é de Thiago Slovinski e do próprio Daniel Alves, que participou de todo o projeto. O diretor do Fifa+ é Ulisses Neto.
Na conversa de 40 minutos com a reportagem, Daniel Alves também comentou sobre o retorno ao Barcelona, o sonho de ser capitão da seleção brasileira no Mundial do Catar e o desejo de continuar atuando. Não está nos seus planos retornar ao futebol brasileiro porque isso seria incoerente da sua parte com o São Paulo. “Mas posso voltar como alguém que pode revolucionar o futebol brasileiro de uma outra maneira. Dono de um clube ou coisas assim”, avisa, sem dar detalhes. “Quero poder transformar o futebol. Tem muita coisa para melhorar. Os pioneiros têm de existir. Eu gostaria, no futuro, de ser um pioneiro”.
Você é um atleta com uma presença midiática importante. Todos sabem quem é o Daniel Alves, mas creio que poucos te conhecem. O documentário foi uma oportunidade para mostrar mais quem você é e o que pensa?
Sem dúvida. Foi uma possibilidade de poder mudar o foco do que já estamos acostumados. As pessoas vivem num achismo sobre mim e outros atletas. Nós, quando temos essa oportunidade de mostrar como somos atrás das câmeras, do que todos já estão acostumados, conseguimos sensibilizar um pouco as pessoas e contar que somos normais. Nós erramos, acertamos, sofremos e nos divertimos. É o cotidiano de um ser humano normal. A gente aproveita essa chance para contar um pouco disso. Não quero causar frustrações a ninguém, queremos criar possibilidade de as pessoas ser o que elas quiserem.
Você disse que tomou a decisão de defender o São Paulo porque queria realizar um sonho. Esse sonho virou pesadelo diante da saída conturbada do clube?
Não. Essa desavença toda foi gerada por pessoas, não pelo sonho. O sonho é intocável. É como o coração. Você imagina o que é, mas não pode tocar. O sonho não vai ser frustrado, só se o sonhador permitir. E esse sonhador aqui não vai permitir. Nós deveríamos começar a colocar ordem nos diálogos porque senão geram interpretações diferentes. Quando eu falo do São Paulo, não falo do clube. Falo das pessoas que representam o São Paulo. E isso gera uma confusão. Infelizmente, as pessoas se destacam pelo caos que elas formam e não pelos exemplos que elas são. Assim, gera um pouco de desavença. Mas meu coração sempre vai estar em paz porque tento oferecer o melhor para as pessoas. Não é prepotência saber da sua capacidade, saber que você é um vencedor. Isso é uma realidade. E eu costumo falar que as pessoas têm que ser quem são, independentemente das consequências. Quando você trabalha com sentimento, com paixão, às vezes as pessoas se cegam. Elas veem um problema e tentam eliminar uma solução. O problema custa mais trabalho, mais sacrifício. Por isso que digo que elas não vão conseguir frustrar meu sonho. Não foi só uma conquista que me fez realizar o sonho no São Paulo. Foi vestir a camisa do São Paulo, poder me realizar como sonhador e transformar a vida de outras crianças. Elas tinham virado chacota porque nunca tinham visto o São Paulo ganhar. Essa foi a maior conquista: ver as crianças circulando com a camisa do São Paulo e podendo dizer que viram o time ser campeão. Vivi muitas coisas lindas no São Paulo e é isso que levo sempre. As outras coisas que houve são parte do processo. Um sempre está com o controle na mão para decidir.
“A abelha não tem tempo de ensinar para a mosca que mel é melhor que merda”. Essa metáfora é muito marcante no documentário e gerou controvérsia. Pode explicar o contexto dela?
O contexto da frase é simples: se você tem um objetivo, você tem de lutar por ele. Você não precisa explicar para as pessoas que tem aquele objetivo. Não é a informação, é a interpretação. Só que as pessoas transformam as coisas porque o que se vende são as polêmicas. Ninguém nunca tinha me perguntado qual era o contexto disso. As pessoas estão achando que o São Paulo é a merda e o Barcelona é o mel? Não, muito pelo contrário. A mosca nunca vai ser uma instituição. Ela é simplesmente a mosca, uma parte pequena da vida. Se as pessoas quiserem ir para o outro lado, elas vão. O sentido da frase é que não tenho tempo a perder tentando explicar para as pessoas o caminho a seguir. Se você pensar que você não vai seguir o maior vencedor da história do futebol, quem você vai seguir? Eu quero seguir os campeões, as pessoas que, de alguma forma, transformaram a vida das outras. Quero seguir quem faz história, não os contadores de história. Se você não vai seguir essas pessoas, você é mosca, então não tenho tempo para ensinar que o mel é melhor que a merda. E se as pessoas quiserem falar do Barcelona e do São Paulo, elas fazem. Mas o caminho é diferente. Não falo nunca da instituição. Tenho o maior respeito pela instituição. Deixei o meu sangue pelo São Paulo. As pessoas que estão lá no São Paulo não podem falar nada de mim, tanto que elas só falam que ninguém é maior do que o São Paulo. Eu nunca quis ser maior do que o São Paulo. Como vou ser maior do que meu sonho? Não confundam as coisas. Não vivo essas polêmicas. Conheci gente maravilhosa no São Paulo, que quer o bem do São Paulo, mas não são todas que querem o bem. Não tenho tempo para explicar que um caminho é melhor que o outro. Eu defendo sempre minha filosofia. Ela não varia em função do que vão pensar, senão deixa de ser minha filosofia. Se me adapto ao que as pessoas pensam sobre o que eu falo, eu deixaria de ser eu mesmo. Eu defendo a minha verdade e ela é só uma. As pessoas interpretam o que quiserem.
Você afirmou que chegou em seu limite no São Paulo. O que contribuiu para desgastar essa relação, para além das questões financeiras?
A parte financeira não foi um problema. Eu estava há dois anos com esse problema de grana e nunca dei uma declaração falando sobre isso. Nunca quis ser maior do que o São Paulo. Se o problema tivesse sido esse, já tinha cortado pelo raiz. Mas eu estava querendo construir uma coisa e eles não estavam querendo. Se as pessoas pensam de maneiras diferentes, elas não vão para o mesmo lugar. Claramente não estávamos na mesma sintonia. Meu objetivo era tirar o São Paulo da fila. Era o objetivo master. Mas depois fui começando a perceber que esse não era o objetivo de todos. Nem todos queriam a mesma coisa. Houve uma divergência grande. Nós éramos líderes do Brasileirão, com uma vantagem boa, e não sei por que venderam quem faziam nossos gols e quem estava resolvendo. Nunca fui questionado sobre isso. Aí você via que os interesses não eram os mesmos. Já havia uma instabilidade dentro do clube e no momento em que as coisas estão funcionando, há pessoas que fragilizam o clube. É muito fácil mandar o Fernando Diniz embora, focar no Dani, que não presta, criticar o Volpi. Criar vilões é muito fácil.
Em que momento a sua relação com o São Paulo se tornou insustentável e você decidiu não mais jogar pelo clube?
Quando tomei a decisão de ir para a Olimpíada, eu tomei essa decisão representando o São Paulo. Fui campeão no sábado, peguei um voo de 24 horas, treinei na segunda para jogar na terça pelo São Paulo. Quem não respeita a instituição não faz isso. Foram criadas muitas polêmicas sobre mim. Eu só queria tirar o São Paulo da fila. Lutei muito tempo por isso. Quando estávamos para conseguir isso, começamos a nos enfraquecer. Os interesses não estavam sendo os mesmos. Aí houve mudanças e conseguimos ganhar (o Paulistão de 2021). Mas os interesses não eram os mesmos. E não foi problema de dinheiro. Se eu tivesse precisando de dinheiro, não teria voltado para o Brasil para jogar no São Paulo. Tanto que quando nos reunimos para discutir sobre isso, eu perguntei: ‘vocês têm certeza de que querem me trazer para o São Paulo? Porque a conta não vai fechar em algum momento e nós podemos nos prejudicar’.
Eu tinha objetivos e sonhos e jogar no São Paulo era um deles. Não queria vir a qualquer custo. Construí uma carreira, um respeito. Trouxe comigo um monte de coisas. Eles (dirigentes) tinham de saber se tinham a capacidade de me ter ou não. Se eu fosse da diretoria do São Paulo, não teria me contratado nunca porque o time precisava ser estruturado. E, para estruturar o time, não era necessário endividá-lo. Eu fui por um sonho. Não saí da forma que queriam, mas saí realizado porque consegui realizar esse sonho. Sou grato a todas as pessoas que me levaram ao clube. Sou grato à instituição por abrir as portas para realizar meu sonho. Tentei ser o melhor que pude para fazer o São Paulo ser diferente, mas não consegui porque não fui seguido. O mínimo que fui seguido não foi suficiente para transformar uma instituição tão grande como o São Paulo. Antes de haver mais danos, preferi dar um basta. Fiz o que era melhor para o São Paulo e para mim naquele momento. As coisas só funcionam se todos estamos na mesma sintonia e direção. A partir do momento em que mudamos a direção, não contem comigo. Nosso País, infelizmente, é feito de heróis e vilões. Eu não creio nisso. O mundo é tão grande que cabem todos. Quero mudar as pessoas, as formas como elas conduzem suas vidas, não o Brasil. O Brasil é o melhor do mundo. Não há outro como o Brasil.
Como foi a negociação para voltar ao Barcelona? O que você conversou com o Xavi?
Foi uma surpresa receber a chamada do Xavi e poder voltar. Eu estava em outro foco. Na época, estava sendo embaixador da Comunidade de Países de Língua Portuguesa e tentando trazer soluções. Do nada, recebi a ligação dele dizendo que queria contar comigo, que precisaria da minha experiência. Ele tinha me acompanhado na Olimpíada e no São Paulo e viu que minha performance era boa e eu estava bem fisicamente. É a história se repetindo em um outro momento. Peguei o voo de Portugal direto para Barcelona para comunicar que mais um capítulo seria escrito. Nem pensei muito para responder. Foi um ‘sim’ e vamos embora.
Na casa do Cafu, capitão do penta, você olha com carinho para a taça da Copa do Mundo. Você se imagina levantando o troféu do hexa com a seleção brasileira?
Sem dúvida. Temos de criar esse relacionamento com os nossos sonhos. O Cafu me inspira a não desistir e a lutar pelo que acredito. Isso é a maior injeção de adrenalina que alguém pode receber. É uma referência para não desistir e conquistar. Nós temos de nos alegrar pelas vitórias dos outros. Se não nos alegrarmos, seremos sempre escravos do que nós fomentamos. Se nos alegrarmos, vitórias virão para a nossa vida. Me relacionar com pessoas que te animam, como o Cafu, é prazeroso. Foi um dos momentos mais incríveis da minha vida poder encontrá-lo. É um ídolo de criança. Respeito muito a sua trajetória e a forma como conduziu sua vida. É disso que precisamos. De boas referências, de pessoas que conquistam.
Como está o Daniel Alves hoje, psicologicamente, fisicamente e tecnicamente, a seis meses da Copa do Mundo?
Estou muito bem, trabalhando em todos os aspectos para melhorar e encontrar meu melhor nível. Sei que a exigência é muito grande numa Copa do Mundo. Já vivi isso. A construção para você estar numa Copa não é só na convocação, é diária, passa pelo que você faz no seu clube, pela sua trajetória dentro da seleção, a quantidade de jogos e a entrega que você tem. Tudo isso acaba criando uma conjunção que abre caminhos e te dá possibilidades. Tenho de estar sempre aberto a melhorar como profissional e pessoa.
Você fala no documentário que o desejo, o sangue na veia e o brilho no olho seguem intactos. Até quando crê que terá essa vontade de jogar?
Eu estava brincando recentemente que quando igualar os anos com as quantidades de conquistas será o momento de parar. Agora ainda está desnivelado. As conquistas estão por cima. Quando isso se equilibrar, aí será o momento de parar. Mais umas (taças) vão vir ainda. Vou tentar igualar ao Buffon. Ele renovou até os 46 anos. A Olimpíada de Paris está aí. Deixo a vida me levar.
Voltar ao futebol brasileiro antes de se aposentar está nos seus planos?
Eu fui para o São Paulo para realizar um sonho. Não teria sentido voltar ao Brasil para jogar em outro clube. As minhas palavras seriam quebradas a partir do momento em que aceitasse jogar em outro time. Temos de ser coerentes. Realizei meu sonho. Vi que é muito grande tudo que eu gostaria de fazer. Mas posso voltar como alguém que pode revolucionar o futebol brasileiro de uma outra maneira, dono de um clube ou coisas assim. Quero poder transformar o futebol. Tem muita coisa para melhorar. Os pioneiros têm que existir. Eu gostaria, no futuro, de ser um pioneiro.
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