SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O Ministério da Defesa da Rússia anunciou a primeira redução de ataques sem motivação humanitária desde o começo da guerra na Ucrânia, em 24 de fevereiro. A pasta diz que vai “reduzir drasticamente a atividade militar em torno de Kiev e Tchernihiv”.
A motivação oficial é facilitar as negociações de paz que recomeçaram em modo presencial em Istambul, com a presença do próprio presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, nesta terça (29). Mas a medida, se vingar, também dá tempo ao Kremlin para adaptar seu discurso sobre a guerra e permitir a Vladimir Putin tentar cantar vitória na criticada ação.
Os negociadores ucranianos fizeram a oferta de neutralidade militar -um dos objetivos centrais da Rússia no conflito, evitar a entrada da vizinha na Otan, a aliança militar ocidental. Demandam para tanto o fim das hostilidades e a retirada de forças russas.
Em troca, pedem garantias externas de segurança, algo bastante incerto em sua forma, mas que segundo o assessor presidencial Mikhailo Podoliak significaria uma proteção análoga à que membros da Otan dão uns aos outros. A Turquia, misto de rival e aliada de Putin e simpática ao governo de Volodimir Zelenski em Kiev, é uma candidata -mas também é da aliança ocidental, o que dificulta a equação.
A presença de Erdogan nas conversas no magnífico palácio otomano de Dolmabahçe, contudo, coloca um peso até aqui inédito na tratativa. Entre os negociadores estava o bilionário russo Roman Abramovitch, que vinha agindo por fora e até foi supostamente envenenado por opositores da paz, um episódio obscuro ainda.
O negociador-chefe russo, Vladimir Medinski, disse até que uma cúpula Putin-Zelenski poderia ocorrer se houver um texto de acordo pronto e aprovado por ambos os lados. Ele, que rejeitou o termo cessar-fogo para evitar a leitura de capitulação, disse que Kiev pediu para poder entrar na União Europeia, algo que será malvisto em Moscou, por trazer o arcabouço liberal-democrático para uma grande população nas suas fronteiras.
Os ucranianos também aceitam discutir em 15 anos o status da Crimeia, região histórica russa anexada por Putin em 2014. Não há consenso divulgado sobre o Donbass, o leste do país ocupado por separatistas pró-Rússia na guerra civil iniciada naquele mesmo ano, mas Zelenski já sinalizou aceitar o debate.
Já o ministro-adjunto da Defesa russo Alexander Fomin disse que o cessar-fogo parcial visa “aumentar a confiança mútua e criar condições para negociações futuras para alcançar o objetivo de assinar um acordo de paz com a Ucrânia”.
No Ocidente, será lido como uma admissão de incapacidade militar. De uma forma ou de outra, blindados russos já foram vistos rumando para a fronteira norte, em Belarus, e os Estados Unidos dizem ter captado movimentações para longe de Kiev.
Putin sempre deixou suas opções abertas na guerra, nunca tendo admitido uma invasão completa com objetivo de ocupação, ainda que a ação sugerisse isso. Nesta terça, antes do anúncio do cessar-fogo, o ministro da Defesa da Rússia, Serguei Choigu, disse que o “objetivo principal” é a “libertação do Donbass”.
“Os principais objetivos do primeiro estágio da operação foram completados. O potencial de combate das Forças Armadas ucranianas foi significativamente reduzido, o que possibilita focar nossa atenção e nossos esforços em atingir o objetivo principal, a libertação do Donbass”, afirmou o ministro em uma reunião que foi televisionada.
Na semana passada, as Forças Armadas russas já falavam na tal primeira etapa da guerra. Em campo, o que se viu desde então foram três movimentos. Primeiro, o desengajamento russo de cidades em torno de Kiev, que a Ucrânia clamou para si como vitórias militares, embora a vital Tchernihiv (nordeste da capital) tenha sido cercada.
Segundo, a destruição da resistência residual ucraniana em Mariupol, tornando o fumegante conjunto de ruínas um ponto central da conexão terrestre entre o Donbass e a Crimeia.
Por fim, como Choigu deixou claro, uma virada tática que visa atacar o centro das forças ucranianas junto às fronteiras do Donbass. Se houver reforços suficientes pelo sul, vindos da Crimeia, é possível que os russos tentem cercar esses combatentes -que podem fugir a oeste, para Kiev, ou tentar a sorte. Ou apenas a ameaça disso pode ajudar a chegar a um acordo.
O exemplo de Mariupol mostra que, apesar da incompetência em vários aspectos, a ofensiva russa aposta sem muita restrição em guerra de atrito quando necessário.
O que isso significa? Que Putin pode estar buscando encerrar o conflito em termos que lhe permitam cantar uma vitória em casa. No Ocidente, serão apontadas as falhas bizarras e os problemas logísticos de sua campanha, mas se o Donbass acabar independente e unido fisicamente à Crimeia, o sonho nacionalista da Nova Rússia na costa do mar Negro estará entregue.
O problema para o russo é que a dimensão de sua guerra, com frentes múltiplas de ataques e a tentativa de cercar Kiev indicam que ele no mínimo quis a capitulação de Zelenski por coerção. Não deu certo, e suas forças estavam dispersas demais para empregar um golpe definitivo.
Do ponto de vista retórico, o Kremlin poderá dizer que tudo o que Putin anunciou no primeiro dia da guerra terá sido cumprido -resta saber o que vão fazer com a promessa de “desnazificar” o vizinho, que nos primeiros dias da campanha viraram um pedido do presidente para que os militares ucranianos derrubassem Zelenski e seu governo de “neonazistas e viciados”.
Esses dias ficaram para trás faz tempo, e sempre será possível dizer que a pressão militar sobre Kiev sempre foi branda, em comparação com a obliteração de Mariupol e mesmo o cerco a Kharkiv. No mais, de fato os russos atingiram duramente a infraestrutura militar ucraniana, destruindo inclusive a base industrial de defesa do país.
Portanto, a derrota de Putin na visão ocidental pode ser uma vitória suficiente para lhe manter o apoio interno. Resta saber qual será esse desenho em meio às negociações e o quão disposta a aceitar a excisão da dita Nova Rússia estará Kiev.
“Parece provável que as demandas [de Moscou] sejam mais extremas. Eles parecem ter feito uma guerra geral, não apenas para formalizar uma área que já controlavam. Eles lutam uma guerra desenhada com ambições maiores”, afirma George Friedman, da consultoria americana Geopolitical Futures, um dos principais analistas estratégicos americanos.
Tudo pode ser uma dissimulação, é claro, e Moscou apenas busca ganhar tempo para refazer suas táticas visando o objetivo estratégico de derrubar Zelenski e instalar um regime títere em Kiev. A resistência popular, contudo, sugere que o plano é pouco palatável, embora na TV estatal russa apresentadores de talk-show já falem abertamente em “ter a Ucrânia, queira ela ou não”.
Kiev também dissimula suas intenções, como seria esperado. Zelenski uma hora está clamando armas e apoio em visitas virtuais a Parlamentos no mundo todo, noutra concede entrevistas sóbrias dizendo que pode reconhecer a realidade no Donbass e aceitar a neutralidade exigida por Moscou.
Novamente, é jogo de palavras: com o grau de conflito territorial que tem com a Rússia, a Ucrânia nunca seria parte da Otan, exceto que a turma de Bruxelas quisesse contratar a Terceira Guerra Mundial. Mas de qual neutralidade fala Zelenski?
Friedman aposta que ele só tem como opção adotar o modelo sueco, que formalmente não é da Otan mas que tem lado certo na disputa Ocidente-Rússia desde a Guerra Fria. Um ponto central é o tal pedido feito por garantias de segurança de terceiros para aceitar a rendição sem esse nome.
Deixe o Seu Comentário