SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A dois meses da eleição presidencial na França, Emmanuel Macron resolveu concentrar esforços em uma crise a mais de 2.000 quilômetros de distância de seu país, o conflito que opõe a Rússia a potências do Ocidente sob o temor de uma invasão da Ucrânia.
Sem Angela Merkel no comando da Alemanha, interlocutora mais próxima de Vladimir Putin nos 16 anos em que os dois mandatários coincidiram no poder, coube ao presidente francês buscar assumir o papel de porta-voz dos interesses da Europa ocidental em diálogos em Moscou, na segunda (7), e Kiev, nesta terça-feira (8).
Sua tentativa de se cacifar com a projeção internacional adotando o papel de mediador da crise, às vésperas de concorrer a um segundo mandato –ele lidera as pesquisas, com cerca 25% das intenções de voto contra 18% da segunda colocada, Marine Le Pen–, se contrapõe à retórica mais agressiva do presidente americano Joe Biden.
À França, afinal, convém ser mais comedida que os Estados Unidos, já que uma guerra no continente colocaria a arquitetura de segurança da União Europeia em xeque, geraria forte impacto econômico e provocaria uma nova crise de refugiados, afirma Hussein Kalout, pesquisador e conselheiro do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais).
Relatórios do governo americano estimam que um conflito na Ucrânia poderia levar ao deslocamento de até 5 milhões de pessoas para a Europa, a partir da Polônia.
Não é a primeira vez que Macron defende que a Europa tenha uma posição independente da Casa Branca. Ao lado da própria Merkel, em junho passado, defendeu que a UE deveria manter uma política autônoma em relação à China e não se alinhar automaticamente aos americanos.
“Abriu-se um vácuo com a saída de Angela Merkel. Olaf Scholz [novo premiê alemão] não possui a mesma experiência, e a Alemanha está numa situação um pouco mais desconfortável nessa crise, devido à extensa relação econômica e da dependência energética [da Rússia]”, diz Oliver Stuenkel, da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
“A articulação de um projeto de maior autonomia em termos geopolíticos da União Europeia é um tema muito importante para Macron. Então ele claramente se projeta como um arquiteto de uma nova fase do bloco no cenário internacional.”
Berlim de resto mantém um papel de liderança por ser a principal economia do bloco, mas Jean-Marie Guéhenno, da Universidade Columbia, destaca que pesa nessa recente proeminência do líder francês nas negociações o fato de a França ocupar a presidência rotativa do Conselho Europeu e precisar mobilizar a instituição. “Se possível ter não apenas dois, mas diversos dirigentes fortes na União Europeia, isso fará o bloco mais forte.”
Para analistas franceses, mais do que uma tentativa de ser uma nova Merkel, Macron usa de seu histórico de relações. “Ele é um dos únicos líderes europeus que mantém contato mais frequente e regular com Putin nos últimos anos”, diz Marie Dumoulin, diretora do programa Europa Ampla no ECFR (Centro Europeu de Relações Exteriores, na sigla em inglês). “Então, numa situação em que ele avalia que precisa falar diretamente com o russo, usa esse contato para fazer uma voz europeia ser ouvida.”
O presidente francês foi o primeiro chefe de uma grande potência que Putin recebeu pessoalmente desde a eclosão das tensões na fronteira ucraniana, no fim do ano passado.
A aproximação entre os dois vem desde que o francês assumiu o cargo, em 2017, quando recebeu o russo no Castelo de Versalhes. No ano seguinte, no dia da final da Copa do Mundo da Rússia (vencida pela França, sobre a Croácia), eles se reuniram mais uma vez e prometeram aprofundar os laços.
O encontro de maior repercussão se deu em agosto de 2019, na França, para discutir as crises na Síria e na Ucrânia. O resultado, porém, foi o oposto do esperado, e a relação entre os dois passou a ser vista com certa desconfiança por outros chefes de Estado –as estratégias de Macron não haviam sido debatidas antes com outros europeus.
Michel Duclos, diplomata e conselheiro especial de geopolítica do think tank Instituto Montaigne, define as trocas dos dois líderes como uma “relação de fracasso”. Em seu livro “La France dans le Bouleversement du Monde” (a França na convulsão do mundo), lançado no ano passado, ele destacou que, quanto mais os diálogos com Putin pareciam não dar frutos, mais o francês insistia em mantê-los.
Assombra Paris que o mesmo se dê agora, já que, apesar dos esforços no Leste Europeu, Macron ainda não saiu com algo que se possa chamar de vitória diplomática nem com alguma garantia concreta de que não haverá conflito. À reportagem Duclos aponta que as circunstâncias mudaram. “De certa forma, Putin precisa um pouco de Macron hoje; alguém que queira evitar a guerra e seja seu interlocutor no Ocidente.”
Em 2008, na invasão da Geórgia, coube também ao presidente francês da época, Nicolas Sarkozy, liderar as negociações. “Os dois são muito ativos, dinâmicos, enérgicos e têm uma relação mais pessoal com Putin”, diz Guéhenno. À época, porém, os americanos não se fizeram tão presentes quanto agora, e Sarkozy não enfrentaria uma eleição em poucos meses –apesar de ainda não ter lançado oficialmente sua candidatura, Macron deve buscar a reeleição.
Marie Dumoulin lembra que política externa não está entre os assuntos mais relevantes para o eleitor francês, mas o tema Ucrânia já chegou à campanha, com presidenciáveis se manifestando sobre a crise e sobre como lidariam com ela de maneira diferente.
Em entrevista à France Inter, o ultradireitista Eric Zemmour afirmou que Macron deveria negociar com os russos antes e que Putin não confia mais no francês. O candidato defende ainda um acordo pacífico, que cederia ao russo, ao garantir que a Ucrânia não faça parte da Otan. Já a direitista Valérie Pécresse propôs, em entrevista ao canal France 5, uma conferência europeia para gestar um conselho de segurança pan-europeu, deixando os EUA de lado.
Para Kalout, do Cebri, pesa nas ações de Macron o cálculo de como os impactos econômicos na França de um conflito na Ucrânia podem prejudicar o primeiro colocado nas pesquisas.
Há, ainda assim, riscos, como não conseguir os resultados esperados das iniciativas diplomáticas e uma guerra eclodir, o que geraria uma crise de credibilidade para o presidente, aproveitada por seus oponentes. Por outro lado, se for bem-sucedido, pode ficar com o crédito de ter evitado o conflito. “Mas penso que isso pode significar só alguns pontos percentuais”, diz Dumoulin.
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