TATIANA CAVALCANTI
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A aposentada Elaíne Maria Araújo Sales, a dona Nininha, mora no número 480 da rua Alvarenga, em Ouro Preto (MG), desde que nasceu, há 70 anos. A casa do século 18 está na família há mais de 150 anos, calcula ela, e tem passado para herdeiros geração após geração.
Mas a residência histórica, de 91 m², corre o risco de ruir. A fachada original, uma larga parede de taipa de pilão, está inclinada. O imóvel de dona Nininha está dentro do Bom-Será -conjunto arquitetônico de construções típicas do século 18 presentes nas cidades do Ciclo do Ouro, em Minas Gerais-, e vai ser restaurado junto com outros dois domicílios em condições críticas, na mesma rua.
“A fachada da minha casa já está tão inclinada que chama a atenção de turistas curiosos que tiram foto, mas ficam receosos de serem atingidos pelo muro”, afirma a aposentada que mora com o filho, o taxista Donizete João da Silva Júnior, 27, na residência de portas e janelas cinzas por fora e coloridas por dentro.
As três moradias dos séculos 18 e 19 pertencem a famílias de baixa renda. A reforma será realizada por meio do projeto BomSerá ao custo de R$ 1,4 milhão, patrocinado pelo Instituto Cultural Vale, via Lei Rouanet. O prazo final das obras, que têm apoio do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), é dezembro.
O projeto não consiste apenas em restaurar os três imóveis de Ouro Preto, considerada Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco (agência da Organização das Nações Unidas). Haverá também oficinas de conservação e restauro voltadas para a comunidade, professores e alunos do ensino médio da cidade e região.
É o que explica Bel Gurgel, diretora artística do IA (Instituto de Arte Contemporânea de Ouro Preto), que encabeça o projeto. “O objetivo é restaurar e capacitar os moradores, que receberão as intervenções para que possam eles mesmos realizar a manutenção preventiva de suas casas.”
Há ainda, segundo Bel, a formação de mão de obra qualificada para 20 bolsistas que futuramente poderão atuar em obras de restauro. “Vamos transformar esses jovens em agentes do patrimônio.”
Bel explica que a maioria dos interessados nessas aulas são mulheres. Uma delas é a restauradora Yara Ferreira, 22. Nascida e criada em Ouro Preto, Yara diz que a construção é uma carreira majoritariamente masculina.
“É reconfortante ver as mulheres ali trabalhando, botando a mão na massa. A gente mostra que consegue tanto quanto os homens”, afirma a bolsista.
Responsável técnico pela execução das obras, o engenheiro e professor de restauro Ney Ribeiro Nolasco, afirma que este projeto é um trabalho diferenciado.
“Usamos a restauração para acessar a questão cultural e saber como as famílias convivem com o patrimônio”, afirma. Ele diz que o projeto faz um registro de como as pessoas se relacionam com a casa.
A pensionista Efigênia Rosa Camilo, 94, já deixou a casa onde vive “desde sempre” para que seja restaurada. O imóvel, de 41m², onde ela mora com um neto, chegou a ser alugado algumas vezes, mas é onde ela pretende voltar a morar quando a reforma terminar.
“É uma casa pequena, mas ajeitadinha. É bacana como o pessoal tem tratado o imóvel com o valor que ele merece”, afirma Efigênia, ao lado da neta, a assistente de processamento de dados Luzia Câmara, 59.
A neta afirma que a reforma, já em curso, vai trazer segurança para dona Efigênia, pois o telhado apresentava instabilidade. “Está com a madeira podre, com cupim, e vai caindo os farelinhos. É um perigo, principalmente quando chove. [O restauro] vai ser um conforto para ela e meu irmão”, diz Luzia.
O local possui um banheiro pequeno, porém, que vai ganhar acessibilidade para dona Efigênia utilizar com sua cadeira de rodas. Também serão instaladas nas paredes de alvenaria barras de apoio.
Alguns parentes dos proprietários das casas também trabalham na obra. É o caso de Alex Garcia, 48, ajudante de alvenaria. Ele é genro de dona Aparecida, que morreu recentemente, e atua diretamente na casa dela, uma das mais degradadas.
Já dona Nininha deixou a residência apenas no início de agosto. Ela diz que é a primeira vez que sai do imóvel histórico. “Eu nasci e fui criada aqui nessa casa tão aconchegante. Dá um aperto no coração”, diz.
“Aqui é tudo muito antigo, da época de Tiradentes [1746-1792] e da Inconfidência Mineira. A porta da igreja em frente à minha casa é atribuída a Aleijadinho. Precisa conservar tudo. Estamos ansiosos com a reforma. Quero ver nossa casinha bem linda porque ainda vai passar muita gente aqui”, afirma a aposentada.
Segundo Paola Dias Villas Boas, professora do curso superior de Tecnologia em Conservação e Restauro do Instituto Federal de Minas Gerais, não há como saber com exatidão o período de construção das edificações.
Mas as moradias podem ter começado a surgir na época do escultor Aleijadinho (1738-1814), ou um pouco posterior a seu tempo.
“É mais difícil precisar pela escassez de documentação. Mas essas edificações provavelmente foram construídas nos séculos 18 e 19, no período colonial. Elas estão inseridas no caminho tronco, traçado urbano original da cidade quando se chamava Vila Rica”, afirma Paola.
O engenheiro Nolasco conta que é muito romântico falar que as pessoas moram em um sítio arqueológico, mas que isso é oneroso.
“O restauro é caríssimo e poucos têm condições de fazer as obras da forma exigida. Muitas casas acabam em condições insalubres. Uma parede não pode ser pintada sem autorização do Iphan, que inclusive estabelece a cor.”
Para ele, esse projeto muda esse conceito. “Ele quebra essa tática de não ajudar a comunidade. Existe uma cobrança grande a manutenção das casas, mas o Poder Público não ajuda em nada.”
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